Construção de embarcação em prancha incluída na Enciclopédia iluminista de Diderot e d’Alembert, publicada em Paris de 1751 a 1772
Construção de embarcação em prancha incluída na Enciclopédia iluminista de Diderot e d’Alembert, publicada em Paris de 1751 a 1772

O Arsenal Real da Marinha foi criado no Brasil em 1763, pelo vice-rei Antônio Álvares da Cunha, o conde da Cunha, e situado na praia de São Bento, na cidade do Rio de Janeiro. A fundação de um arsenal para reparo e construção de navios de guerra foi resultado de uma conjuntura de fatores, como a descoberta de ouro e prata na região das Minas Gerais no final do século XVII e a transferência da sede de governo português de Salvador para o Rio de Janeiro, o que deslocou o eixo econômico da colônia para a região centro-sul e exigiu maior preocupação com a defesa militar. Além disso, os frequentes conflitos com a Espanha reforçaram a necessidade de aumentar a capacidade bélica do Brasil, já que a região platina tornara-se foco de disputa entre as duas coroas (Greenhalgh, 1951, p. 17-22).

Até o século XVIII, a atividade de construção e reparo de embarcações na América portuguesa era realizada por particulares e em estaleiros artesanais, que atendiam às demandas do transporte de cabotagem e das embarcações que atracavam no litoral após cruzar o Atlântico (Goularti Filho, 2011, p. 313). Esta situação foi alterada durante o reinado de d. José I (1750-1777), quando o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, empreendeu um amplo conjunto de reformas tendo por objetivo equilibrar as finanças do Estado português. A política ilustrada pombalina, num período em que a produção aurífera dava sinais de declínio, orientou-se para o estímulo à agricultura, às atividades manufatureiras e ao comércio. Para tanto, estruturou-se um aparato legal que buscava conferir maior eficiência e centralização às decisões políticas e administrativas das matérias pertinentes a cada uma das secretarias de Estado, bem como se executaram medidas que pretendiam suplantar as deficiências de arrecadação dos direitos e rendas reais, além de especializar a gestão das contas públicas e melhorar a fiscalização de impostos e tributos (Subtil, 1993, p. 173).

O projeto pombalino de reformas incluiu as forças navais portuguesas – sua militarização e profissionalização tornaram-se fundamentais para defesa da enorme frota mercante que embalava o comércio entre o império e seus domínios ultramarinos. A reformulação empreendida na Marinha portuguesa articulou-se em torno de três eixos: a construção naval, a militarização das forças navais e o reforço de seu papel junto ao Estado, e a criação de escolas para a formação de pessoal especializado (Malvasio, 2009, p. 74-76).

A Ribeira das Naus, o principal estaleiro português, destruído pelo terremoto de 1755, deu lugar a um complexo manufatureiro naval, o Arsenal de Marinha de Lisboa, subordinado à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha. Esta iniciativa foi acompanhada por outras providências, como a contratação de trabalhadores especializados, o emprego de novas técnicas de construção naval e a instalação de arsenais similares ao de Lisboa em vários pontos do império ultramarino (Malvasio, 2009, p. 81-88). O primeiro estaleiro instalado na colônia capaz de construir embarcações de grande porte, como naus e fragatas, foi o de Belém, em 1761, seguido pelo do Rio de Janeiro, em 1763, e pelo da Bahia, que, embora datasse de 1651, sofreu reformas para adequar-se aos novos propósitos dos arsenais da Marinha portuguesa.

No caso do Rio de Janeiro, apesar de o conde da Cunha ter principiado as atividades do Arsenal de Marinha em 1763, dando início à construção de uma nau de guerra, somente em 31 de janeiro de 1765 foi dada a aprovação formal para o estabelecimento de um estaleiro visando a construção de embarcações de grande porte na cidade. Apesar disso, até 1796 o Arsenal Real da Marinha no Rio de Janeiro não teve organização própria.

A reorganização da Marinha empreendida no período pombalino colocou os arsenais portugueses diretamente subordinados à Secretaria da Marinha, mas havia, ainda, a necessidade de estabelecer uma autoridade capaz de gerir as verbas necessárias ao funcionamento dos arsenais instalados na colônia, especialmente onde faltava um encarregado ligado às forças navais. Este papel foi inicialmente assumido pelos provedores do Erário Régio, cujas atribuições incluíam o controle dos recursos destinados ao funcionamento dos arsenais. Posteriormente, o alvará de 3 de março de 1770 criou o cargo de intendente da Marinha para o arsenal de Salvador, o principal da América, que deveria ser preenchido por um oficial superior da Marinha portuguesa, sob as ordens do Ministério da Marinha e Ultramar. O estabelecimento de um intendente para assumir a direção do arsenal procurou também evitar a má administração dos recursos, bem com o desperdício e a corrupção (Maslvasio, p. 88-96).

A importância dos arsenais instalados na colônia pode ser dimensionada pelo gradual aumento do controle de suas atividades pelo Estado, expresso ao longo das sucessivas reformas das forças navais. Após a morte de d. José, uma série de medidas foi adotada sob o reinado de d. Maria I (1777-1792), visando à continuidade do processo de profissionalização da Marinha portuguesa. A carta de lei de 26 de outubro de 1796 regulamentou o Arsenal de Marinha de Lisboa, criou uma Junta de Fazenda para sua administração e colocou sob sua fiscalização os arsenais estabelecidos no Brasil. Da mesma forma, no último quartel do século XVIII, a Marinha portuguesa experimentou um esforço de modernização, com a criação de órgãos como Academia Real de Marinha (1779), a Companhia dos Guardas-Marinhas (1782), a Real Academia dos Guardas-Marinhas (1796), o Corpo de Engenheiros Construtores (1787), a Brigada Real da Marinha (1797), o Hospital da Marinha (1796), a Junta de Fazenda da Marinha (1796) e as juntas de Fazenda das Esquadras (1797).

O processo de reestruturação da Marinha se fez valer na América portuguesa com a criação do cargo de intendente de Marinha nos arsenais das capitanias, pelo alvará de 12 de agosto de 1797, com a finalidade de estabelecer o mesmo sistema de administração e contabilidade que se praticava no Arsenal Real de Lisboa e já era utilizado no arsenal da Bahia, Belém e Goa. Cabia ao intendente, além da administração do arsenal sob sua responsabilidade, informar à Junta da Fazenda de sua capitania as obras que se faziam necessárias em cada arsenal e enviar o mapa de despesa mensal à Real Junta da Fazenda da Marinha de Lisboa e ao Conselho do Almirantado. Além disso, foi definido que o intendente teria voto nas juntas de azenda de sua capitania. A análise das atribuições conferidas pelo alvará ao inspetor do Arsenal Real da Marinha nos fornece uma perspectiva da estrutura e organização do órgão. Ao inspetor competia a direção dos trabalhos do arsenal, ficando sob sua supervisão os construtores, mestres, apontadores, mandadores, oficiais e artífices empregados nas diferentes oficinas.

Sob a administração do conde da Cunha, portanto, o arsenal do Rio de Janeiro construiu a nau São Sebastião, lançada ao mar em 1767. Após a construção deste navio de guerra, o arsenal do Rio de Janeiro não manteve a produção de embarcações de grande porte, como os arsenais de Belém e Salvador, sendo suplantado por estaleiros particulares (Malvasio, 2009, p. 141). No entanto, um novo estímulo à reorganização do arsenal do Rio de Janeiro se deu com a vinda da família real portuguesa em 1808. Nessa ocasião, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos instalou-se em terras brasileiras e verificou-se ainda a criação de vários órgãos, como a Real Academia dos Guardas-Marinhas (1808), e a consequente regulamentação de suas atividades, de modo que contribuíssem com o desempenho da administração da Marinha do Brasil.

Pelo decreto de 13 de maio de 1808, d. João criou o cargo de almirante-general da Marinha, destinado, exclusivamente, ao príncipe d. Pedro Carlos, seu sobrinho, a quem cabia, entre outras atribuições, a inspeção do Arsenal Real da Marinha da Corte. Com sua morte prematura, em 1812, o arsenal voltou a estar subordinado à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Nesse período, o Arsenal Real da Marinha já possuía uma tanoaria, uma ferraria e um conjunto de pequenas oficinas auxiliares. Havia também uma casa do breu e um trapiche para embarque ou desembarque de materiais, além de edifícios destinados a armazéns para guarda de materiais e comestíveis ou para residência do pessoal empregado no arsenal (Greenhalgh, 1951, p. 52). O decreto de 26 de março de 1808 cita na organização do arsenal os cargos de patrão-mor e piloto-mor. Parte da estrutura do Arsenal Real da Marinha foi estabelecida pelo alvará de 13 de maio de 1808, sendo ele composto por uma Contadoria da Marinha, almoxarife, dois escriturários, pagador, três apontadores e dois guardas. Por meio da decisão n. 38, de 22 de setembro de 1808, regulamentou-se a organização interna da Intendência, Contadoria e Almoxarifado, e Ribeira.

O aumento da complexidade das atividades do Arsenal Real da Marinha e da intendência pode explicar a decisão n. 46, de 26 de outubro de 1808, que mandou separar as autoridades de intendente da Marinha, que respondia também pela direção do arsenal, e de inspetor do Arsenal Real da Marinha, que até então eram exercidas conjuntamente. Ao inspetor coube acumular o cargo de vice-intendente, denotando que, apesar de a decisão distinguir as funções do Arsenal e da Intendência da Marinha, na prática esses dois órgãos tiveram suas responsabilidades estabelecidas em legislação conjunta, com sucessivas regulamentações. Por aquela decisão foi estabelecido ainda o cargo de vice-intendente, com a atribuição de substituir o titular nos seus impedimentos.

As reformas no Arsenal da Marinha e o reordenamento das atribuições do inspetor, realizadas no período joanino, determinavam que estivessem sob sua alçada atribuições bastante amplas, como, por exemplo, o trabalho de construção naval e reparos da esquadra, o combate aos incêndios na cidade, o embarque de artífices que compunham as guarnições de navios, carpinteiros de machado, calafate e outros, o recrutamento de marinheiros para a esquadra e de operários para o arsenal, e o fornecimento de água aos navios ancorados no porto (Greenhalgh, 1951, p. 59).

Nesse período, a mão de obra disponível no Arsenal da Marinha era composta tanto de operários, geralmente homens brancos e portugueses, que levavam seus escravos para trabalharem como ajudantes, quanto de escravos da Coroa, índios, chineses oriundos de Macau e toda sorte de presos e detentos. Os operários, tal como os marinheiros, eram recrutados no meio civil, de forma compulsória, após o toque de recolher, podendo ser nacionais ou mesmo estrangeiros. Algumas profissões gozavam de privilégios e estavam isentas deste recrutamento forçado, como carpinteiros de machado, calafates e tanoeiros (Greenhalgh, 1951, p. 61). No arsenal, funcionou ainda um complexo prisional que incluiu a conversão de um navio português em prisão, sistema inaugurado pela nau Príncipe Real, que, fundeada no Rio de Janeiro em 1808, serviria como presiganga até 1831 (Greenhalgh, 1998). Foi essa embarcação que trouxe para o Brasil parte da família real portuguesa, mais especialmente a rainha d. Maria, o príncipe d. João e seu filho, d. Pedro. Convertido em navio presídio, a nau Príncipe Real inaugurou no Brasil uma nova modalidade de sistema punitivo para onde eram enviados prisioneiros de toda sorte – recrutados à força, prisioneiros de guerra de baixa graduação, criminosos condenados pela justiça comum e pela militar – sentenciados a penas variadas e submetidos a um regime prisional rigoroso, que incluía castigos físicos. Apesar do caráter provisório da utilização de uma nau como presídio, a presiganga se manteve até 1831 (Fonseca, 2003).

Para a construção naval, o Arsenal da Marinha lançava mão da madeira existente no Brasil, que chegava a ser exportada para Lisboa para ser empregada na construção de naus lusitanas. Os demais materiais necessários para equipar as embarcações eram, por via de regra, importados de Portugal ou da Inglaterra. Somava-se à falta de recursos para construção no arsenal a escassez de verbas, outra característica que marcou a trajetória do órgão. A despeito de d. Pedro Carlos, almirante-general da Marinha, possuir grande prestígio junto ao príncipe regente, as dificuldades econômicas acabaram por determinar um baixo investimento de recursos do Erário Régio no arsenal, fator determinante para que suas instalações fossem preteridas para construção de navios de porte.

Somente em 14 de janeiro de 1834 foi aprovado o decreto que reformou a administração das intendências e arsenais da Marinha do Império, estabelecendo a primeira regulamentação específica desses órgãos no período pós-independência.

Dilma Cabral
Out. 2011


Fontes e bibliografia

FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História, UnB, Brasília, 2003.

GOULARTI FILHO, Alcides. História econômica da construção naval no Brasil: formação de aglomerado e performance inovativa. Economia, Brasília (DF), v. 12, n. 2, p. 309-336, mai/ago. 2011.

GREENHALGH, Juvenal. Presigangas e calabouços: prisões da Marinha no século XIX. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1998.

______. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história: 1763-1822. Rio de Janeiro: A Noite, 1951.

MALVASIO, Ney Paes Lourenço. A reforma da Marinha de Guerra portuguesa no período pombalino (1761/1777): a criação de uma Marinha estritamente militar e profissional e as fontes para seu estudo. Disponível em: https://goo.gl/3cTU81. Acesso em: 4 out. 2011.

______. Distantes estaleiros: a criação dos arsenais de marinha e sua inserção na reforma naval pombalina do império marítimo português (1750/1777). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

MIYAMOTO, S. O pensamento geopolítico brasileiro: 1920-1980. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1981.

SUBTIL, José. Governo e administração. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. 4: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. p. 180-181.

VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. Brasil sede da Monarquia: Brasil Reino (2ª parte). Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1984. (História Administrativa do Brasil, v. 8).


Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_NP Diversos - SDH - Códices
BR_RJANRIO_AO Série Marinha - Arsenais de Diversos Estados (XVIII M)
BR_RJANRIO_AP Série Marinha - Arsenal da Bahia (VIII M)
BR_RJANRIO_AR Série Marinha - Arsenal de Pernambuco (XIII M)
BR_RJANRIO_AV Série Marinha - Contadoria (IM)
BR_RJANRIO_AX Série Marinha - Inspeção do Arsenal da Corte (V M)
BR_RJANRIO_AY Série Marinha - Inspeção do Arsenal de Pernambuco (XII M)
BR_RJANRIO_B1 Série Marinha - Intendência e Inspeção da Bahia (XI M)
BR_RJANRIO_B3 Série Marinha - Navios - Força Naval - Distritos Navais (IV M)
BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo - Período Imperial
BR_RJANRIO_BSB_Z6 Ministério da Fazenda - Delegacia de Mato Grosso
BR_RJANRIO_4X Ministério da Marinha
BR_RJANRIO_B5 Série Marinha - Quartel-General e Conselho Naval (III M)
BR_RJANRIO_B0 Série Marinha - Intendência da Corte (VII M)
BR_RJANRIO_B2 Série Marinha - Ministro - Secretaria de Estado (X M)
BR_RJANRIO_B6 Série Marinha - Socorros de Marinha - Corpo de Fazenda (XVII M)

 

Referência da imagem
Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une société de gens de lettres. Paris: Briasson, 1751-1780. Arquivo Nacional, OR_1896_V1_PL06

 

Este verbete refere-se apenas à trajetória do órgão no período colonial. Para informações entre  1822-1889, consulte Arsenal Real da Marinha