O cargo de físico-mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos foi estabelecido pelo decreto de 7 de fevereiro de 1808, durante a estada da corte portuguesa na Bahia, sendo o primeiro ocupante do cargo no Brasil o médico português Manoel Vieira da Silva Borges e Abreu, conselheiro e fidalgo da Casa Real e deputado da Real Junta do Protomedicato.
Em Portugal, o lugar de físico-mor foi criado em 1430, durante reinado de d. João I (1357-1433), cabendo-lhe a superintendência dos negócios de saúde e higiene em todo o Reino e domínios. A carta régia de 25 de fevereiro de 1521 regulamentou suas atribuições, distinguindo-as daquelas que eram de responsabilidade do cirurgião-mor dos Exércitos do Reino, responsável pela fiscalização das artes físicas e cirúrgicas. Um marco na organização sanitária portuguesa, o regimento de 1521 previa que o físico-mor e o cirurgião-mor poderiam se fazer representar por seus juízes comissários no Reino e domínios, assim como aplicar multas e outras penalidades em caso de infração, além de estabelecer que ficava sujeito à autorização do físico-mor o exercício das disciplinas e artes de curar, atribuindo-lhe também a fiscalização das boticas e das atividades do boticário.
A regulamentação da organização sanitária de Portugal era importante para o controle das práticas de cura e seus diferentes agentes na colônia. De acordo com o regimento de 1521, a fiscalização do exercício da medicina seria desempenhada pelos delegados ou juízes comissários que, a partir da provisão régia de 17 de agosto de 1640, teriam ainda o direito de tirar devassa, visto ser impossível o físico-mor se fazer presente em todo o Reino, domínios e conquistas. A provisão régia de 1º de junho de 1742 dispôs que fossem indicados para o Brasil, como delegados do físico-mor, apenas médicos formados na Universidade de Coimbra. Por fim, em 16 de maio de 1774, foi promulgado um regimento geral para os delegados e juízes comissários do cirurgião-mor e físico-mor no Estado do Brasil, intensificando a fiscalização do exercício das artes de curar na colônia.
O físico-mor e seus delegados eram responsáveis, no Brasil, pelo controle da medicina exercida por diferentes curadores, como físicos, cirurgiões, barbeiros, sangradores e parteiras. Cabia-lhes ainda fiscalizar as boticas e o comércio de drogas, devendo inspecionar periodicamente o estado de conservação dos estabelecimentos e dos medicamentos vendidos, bem como os preços praticados. Os comissários do físico-mor também constituíam juntas perante as quais prestavam exames os candidatos à carta de habilitação para o exercício da medicina e, em sua ausência, as Câmaras Municipais nomeavam seus integrantes. Feito o exame prático e de conhecimentos sobre medicina, os resultados eram enviados ao físico-mor em Lisboa para concessão ou não da carta de habilitação. Apesar disso, a vigilância foi bastante precária nas primeiras décadas da colonização. Às enormes distâncias entre as cidades e vilas somava-se a escassez de profissionais, o que muitas vezes forçava as Câmaras do Senado, os corregedores e capitães-generais das capitanias a exercerem eles mesmos a fiscalização do exercício das artes médicas e cirúrgicas.
Os cargos de físico-mor e cirurgião-mor foram extintos em 17 de junho de 1782, com o surgimento da Junta do Protomedicato, que passou a exercer tais competências por meio de seus delegados, cuja autoridade estendia-se ao Reino e domínios. Com a criação da junta, centralizaram-se em um único órgão atribuições que antes eram desempenhadas tanto pelo físico-mor quanto pelo cirurgião-mor. No entanto, com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, foram restabelecidos os cargos de físico-mor e cirurgião-mor. Ainda que na prática suas atribuições já estivessem sendo desempenhadas pelos cargos recém-criados, a Real Junta do Protomedicato foi oficialmente extinta somente pelo alvará de 7 de janeiro de 1809.
Abolida a junta, o alvará de 23 de novembro de 1808 conferiu regulamento para o exercício das atividades do cirurgião-mor e do físico-mor, dispondo ainda sobre sua jurisdição, que se estenderia aos reinos de Portugal e Algarves por meio de seus delegados. O alvará mandava observar os regimentos de 25 de fevereiro de 1521 e de 12 de dezembro de 1631, além de instituir o cargo de delegado comissário do físico-mor e cirurgião-mor. Os delegados teriam jurisdição privativa sobre os assuntos de saúde e higiene, em conformidade com o regimento de 16 de maio de 1744. No tocante à parte civil e criminal, deveria ser executado o estabelecido nos parágrafos 7º ao 11º do alvará de 1521. Os processos de competência do físico-mor e do cirurgião-mor deveriam ser remetidos à Corte para julgamento, tornando-se nula a apelação ou agravo para qualquer autoridade administrativa ou judicial.
O alvará de 22 de janeiro de 1810 deu outro regimento aos delegados do físico-mor, redefinindo suas competências e jurisdição. Segundo este ato, o juiz comissário delegado deveria ser médico formado em Coimbra ou em outra universidade que viesse a ser criada no Reino. Como um juízo privativo para os assuntos relacionados do exercício de medicina, deveria possuir um escrivão, dois visitadores examinadores que fossem boticários aprovados, um meirinho e seu escrivão. A Fisicatura-Mor exercia diversas atribuições, como fiscalizar as boticas e lojas de drogas; visitar, nas alfândegas, todas as boticas e drogas que viessem de fora, assim como as que estivessem nos navios que iriam partir; fazer devassa do exercício da medicina; examinar e licenciar boticários; e proceder ao exame de boticários e médicos estrangeiros.
Após a Independência, foram extintos vários órgãos então identificados com a política lusitana, como a própria Fisicatura-Mor, cuja atuação era motivo de queixas frequentes. Não por acaso, a decisão n. 197, de 3 de setembro de 1825, reafirmava que a jurisdição do físico-mor e provedor-mor de Saúde estavam em inteiro vigor, mandando que as autoridades civis e militares não colocassem obstáculos às suas funções, auxiliando os seus delegados neste exercício. Em 1828, pela lei de 30 de agosto, aboliam-se os lugares de físico-mor, cirurgião-mor e provedor-mor do Império, passando às câmaras municipais e à justiça ordinária as atribuições que lhes foram conferidas pelos regimentos de 23 de novembro de 1808, 28 de julho de 1809 e 22 de janeiro de 1810.
Dilma Cabral
Ago. 2011
Fontes e bibliografia
ABREU, E. A fisicatura-mor e o cirurgião-mor dos Exércitos no reino de Portugal e Estados do Brasil. Revista do IHGB, v. 63, n. 101, p. 154-306, 1900.
BRASIL. Alvará de 23 de novembro de 1808. Manda executar os regimentos do físico-mor e cirurgião-mor e regula a sua jurisdição e de seus delegados. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 163-164, 1891.
______. Alvará de 7 de janeiro de 1809. Abole a Junta do Protomedicato e devolve a sua jurisdição ao físico-mor e cirurgião-mor. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 13-14, 1891.
______. Alvará de 22 de janeiro de 1810. Dá regimento aos delegados do físico-mor e estabelece providências sobre a saúde pública. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 7-17, 1891.
______. Lei de 30 de agosto de 1828. Extingue os lugares de provedor-mor, físico-mor e cirurgião-mor do Império, passando para as câmaras municipais e justiças ordinárias as atribuições que lhes competiam. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, parte 1, p. 27-29, 1878.
DECRETO de 7 de fevereiro de 1808. In: SANTOS FILHO, Lycurgo dos. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1947.
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Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_2O Fisicatura-Mor
BR_RJANRIO_2H Diversos SDH - Caixas
BR_RJANRIO_53 Ministério do Império
BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo - Período Imperial
Referência da imagem
Carta de licença da Fisicatura-Mor, 1824. Arquivo Nacional, Fundo Fisicatura-Mor, caixa 480, pac. 4