Litografia do mercado de escravos na rua do Valongo, no Rio de Janeiro, a partir de pintura de J. M. Rugendas (1802-1858), século XIX.
Litografia do mercado de escravos na rua do Valongo, no Rio de Janeiro, a partir de pintura de J. M. Rugendas (1802-1858), século XIX.

A lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários, determinou a libertação dos escravos com mais de 60 anos. Entretanto, a lei também regulou diversos aspectos relativos à alforria de cativos, bem como determinou uma nova matrícula e novas regulamentações para o fundo de emancipação, acrescentando algumas determinações à Lei do Ventre Livre, de 1871.

O processo de transição regulada da mão-de-obra escrava para a livre foi uma tendência geral nos países recém-independentes da América Latina, apesar da influência do pensamento liberal na classe política da região. Usualmente, a ideia de igualdade esbarrava na questão da propriedade, e a libertação dos escravos era vista como possível fonte de desordem social. (MATTOS, 2009; SECRETO, 2011).

No Brasil, após a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, e da Lei do Ventre Livre, em 1871, um novo projeto de lei sobre a abolição foi elaborado pelo então Presidente do Conselho de Ministros, o liberal Manuel Pinto de Sousa Dantas, e apresentado à Câmara dos Deputados em 1884. O projeto, em linhas gerais, previa a libertação dos escravos a partir dos 60 anos sem indenização aos senhores, que teriam a obrigação de cuidar dos anciãos libertos ou inválidos, em troca de prestação de serviços. Estes últimos poderiam deixar a propriedade do senhor, caso desejassem. O projeto também ampliava o fundo de emancipação através da cobrança de vários impostos aos proprietários, como a taxa de matrícula e de transmissão de propriedade escrava. Estabelecia ainda uma nova matrícula de escravos, que se não fosse efetuada em um ano, daria liberdade aos mesmos e proibia a mudança de província (MENDONÇA, 1999).

A proposta gerou grande polêmica, tendo oposição do partido conservador e dividindo opiniões entre os liberais. Os deputados aprovaram duas moções repudiando o projeto de Souza Dantas em relação à questão servil, ocasionando uma crise política que levou à dissolução da Câmara pelo imperador. A libertação dos sexagenários sem indenização era um ponto de extrema contestação e, mesmo sendo convocadas novas eleições, a rejeição ao projeto continuou, o que acabou levando à demissão do autor (MENDONÇA, 1999).

O senador José Antônio Saraiva foi convidado pelo imperador para compor um novo Gabinete. Apesar de liberal, Saraiva era mais moderado e conciliador que seu antecessor e elaborou um novo projeto, alterando em alguns pontos a proposta de Dantas, com destaque para a alforria mediante indenização. Apesar de ter seu projeto aprovado pela Câmara, as alianças políticas de Saraiva levaram a uma crise em seu ministério e ao seu pedido de demissão, antes da aprovação da lei pelo Senado. O conservador barão de Cotegipe assumiu em seu lugar e o projeto de Saraiva, apesar de continuar sofrendo diversas críticas, foi aprovado pelos senadores sem nenhuma alteração, sendo sancionado pelo imperador em 28 de setembro de 1885 (MENDONÇA, 1999).

Em relação a um dos pontos mais polêmicos para sua aprovação – o caso da libertação dos escravos a partir dos 60 anos – a lei estabeleceu que, a título de indenização pela sua alforria, estes seriam obrigados a prestar serviços a seus ex-senhores durante três anos. Entretanto, ao completarem 65 anos, estariam isentos de tal obrigação, mesmo que não tivessem completado o tempo estipulado. Os escravos com idade entre 55 e 60, que não quisessem realizar o serviço indenizatório, poderiam pagar o valor não excedente a metade do que fosse arbitrado. Após o cumprimento do tempo de serviço mencionado, os sexagenários libertos continuariam em companhia de seus ex-senhores, que seriam obrigados a tratá-los, porém usufruindo do trabalho deles, salvo se preferissem obter os meios de subsistência em outra parte, mediante autorização de um juiz de órfãos.

O liberto ainda seria obrigado a manter domicílio no município onde havia sido alforriado por cinco anos, com exceção das capitais. O juiz de órfãos poderia permitir sua transferência para outro município em caso de doença ou sendo provado o motivo, tendo o liberto bom comportamento e declarando o local do novo domicílio. Caso se ausentasse sem consentimento seria considerado vagabundo, apreendido pela polícia e empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas. Os libertos desocupados também sofreriam punição que poderia chegar a prisão ou envio a uma colônia agrícola. Foi proibida a transferência do escravo para outra província que não fosse a de matrícula e, em uma eventual mudança, o escravo ganharia a liberdade, salvo algumas exceções. Ao escravo fugido ficou vetada a alforria pelo fundo de emancipação.

A lei definiu, no que se refere à matrícula de escravos, procedimentos tais como a declaração do nome, nacionalidade, sexo, filiação, ocupação, idade e valor, calculado conforme uma tabela estabelecida pelo próprio ato, que determinava um teto máximo para o escravo, de acordo com sua idade. No caso das mulheres, seria abatido 25% do valor da tabela. Além disso, estipulou prazos e penas para o não-cumprimento das matrículas, cujos editais deveriam ser publicizados, além de determinar que seriam libertados os escravos que não fossem matriculados no prazo, e que seriam isentos de prestação de serviços os cativos de 60 a 65 anos que não tiverem sido arrolados, todos mediante indenização. Também determinou que a taxa de matrícula seria destinada ao fundo de emancipação, que também foi regulamentado pela lei.

Outro aspecto relevante da legislação foram os novos procedimentos em relação à alforria e aos libertos. Os escravos matriculados seriam libertados mediante indenização de seu valor pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra forma legal, e o seu valor seria o declarado na matrícula, deduzido um percentual a cada ano corrido. O fundo não poderia libertar inválidos, que deveriam permanecer na companhia de seu senhor. No caso dos cativos empregados nos estabelecimentos agrícolas, seu fundo de emancipação poderia ser formado através de títulos emitidos pelo governo, caso seus senhores se propusessem a substituir o trabalho escravo pelo livre. Nesses casos deveriam ser libertados todos os escravos existentes nos estabelecimentos e não poderiam ser admitidos outros, sob pena de serem declarados livres. Com isto o proprietário seria indenizado pelo Estado com a metade do valor dos alforriados, sendo priorizados os senhores que reduzissem mais a indenização. Entretanto, o liberto deveria prestar serviços por cinco anos em troca de alimentação, vestuário e de uma gratificação pecuniária por dia de serviço, que seria arbitrada pelo ex-senhor com aprovação do juiz de órfãos. Metade do valor da gratificação seria pago ao escravo imediatamente, a outra metade deveria ser recolhida a uma caixa econômica ou coletoria e só poderia ser retirada após os cinco anos de serviços prestados.

A lei ainda apresentou algumas disposições gerais e determinou que deveria haver um novo regulamento para a matrícula dos escravos com menos de 60 anos e para o arrolamento especial dos que ultrapassassem essa idade, o que foi expedido em 14 de novembro do mesmo ano, pelo decreto n. 9.517. A execução da Lei dos Sexagenários, assim como a aplicação do regulamento ficou sob responsabilidade da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.


Louise Gabler

3 nov. 2015


Bibliografia

BRASIL. Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885. Regula a extinção gradual do elemento servil. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 14, 1886.

____. Decreto n. 9.517, de 14 de novembro de 1885. Aprova o Regulamento para a nova matrícula dos escravos menores de 60 anos de idade, arrolamento especial dos de 60 anos em diante e apuração da matrícula, em execução do art. 1º da lei n. 3.270 de 28 de setembro deste ano. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, p. 738, v. 1, 1886.

CHALHOUB, Sidney. Escravidão e Cidadania: a experiência histórica de 1871. In: Machado de Assis, Historiador. São Paulo: Cia da Letras, 2003.

MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: José Murilo de Carvalho e Lucia Bastos Pereira das Neves (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 1999.

SECRETO, María Verónica. Soltando-se das mãos: liberdades dos escravos na América espanhola. In: Azevedo, Cecília; Raminelli, Ronald. Histórias das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2011, pp. 135-159.


Referência da imagem

Johann Moritz Rugendas. Voyage pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann & Cie.,1835. OR_2119_DIV4_PL3