A organização da Casa de Rui Barbosa remete aos decretos n. 17.758, de 4 de abril de 1927, e n. 5.429, de 9 de janeiro de 1928, ambos considerados atos fundadores da instituição. Pelo primeiro ato, ficava criado o Museu Rui Barbosa, com a finalidade de conservar a residência e o acervo do jurista. No ano seguinte, pelo segundo, estabelecia-se a Casa de Rui Barbosa, para funcionar como um museu-biblioteca, encarregado ainda de preservar, publicar e divulgar as obras do senador.
Nascido em Salvador, em 1849, Rui Barbosa atuou como jurista, jornalista, deputado estadual e federal, ministro de Estado e senador por sucessivas legislaturas. Abolicionista, foi um importante propagandista da causa contra a escravidão, tendo se dedicado ainda a temas como reforma eleitoral, separação entre Igreja e Estado, alistamento militar obrigatório e sistema federativo, além da doutrina jurídica, sobre a qual deixou vasta obra. Monarquista, aderiu ao movimento republicano somente no final do Império e foi primeiro vice-chefe do Governo Provisório de Deodoro da Fonseca (1889-1891), ministro da Fazenda e, interinamente, da Justiça e Negócios Interiores. Teve importante papel na elaboração da Constituição de 1891 e, como senador, foi autor de inúmeros pareceres que consagraram sua atuação política no Senado, como aqueles sobre a organização da educação nacional, em 1882 e 1884; acerca do projeto de abolição apresentado pelo senador baiano Manuel Pinto de Sousa Dantas, em 1884, e a respeito do projeto de código civil, de autoria do jurista Clóvis Bevilaqua (1902), proposta que seria aprovada somente em 1916. Em sua longeva atividade como senador, notabilizou-se na defesa dos direitos fundamentais e da liberdade de expressão, como advogado impetrou habeas corpus em favor dos presos políticos do governo de Floriano Peixoto (1891-1894), denunciou os maus-tratos e apresentou projeto de anistia para os marinheiros rebelados na Revolta da Chibata (1910), e posicionou-se contra a intervenção federal nos estados promovida no governo de Hermes da Fonseca (1910-1914), processo conhecido como política das salvações, e requereu habeas corpus em favor dos vice-governadores da Bahia e membros do Legislativo.
No campo diplomático, foi embaixador extraordinário e plenipotenciário e delegado do Brasil na Segunda Conferência Internacional da Paz, realizada em Haia, entre 15 de junho e 18 de outubro, cuja atuação lhe valeu a aclamação nacional e internacional, inúmeras homenagens e a consagração popular. Participou da fundação da Academia Brasileira de Letras e foi seu segundo presidente (1908), presidiu o Instituto dos Advogados Brasileiros (1914-1916) e recebeu o título de presidente honorário, em 1917. Foi votado em todas as eleições presidenciais até sua morte, ainda que tenha se lançado candidato, oficialmente, somente em 1910, na sucessão de Afonso Pena, e em 1919, em substituição a Delfim Moreira. Seu prestígio era tamanho, que, em agosto de 1918, foi realizado em todo território nacional o Jubileu Cívico-Literário em comemoração do cinquentenário de seu primeiro discurso público. Em 1921, foi eleito juiz do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, criado naquele ano na Liga das Nações. Na ocasião de sua morte, grandiosas homenagens foram organizadas, após o traslado de seu corpo de Petrópolis para o Rio de Janeiro. Seu funeral teve honras de chefe de Estado, às custas do governo federal, e seu velório na Biblioteca Nacional contou com a presença de membros da elite, políticos, jornalistas e grande participação popular (Gonçalves, 2000, p. 136).
O imóvel em que residiu Rui Barbosa, localizado na rua São Clemente, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, pertenceu a Bernardo Casimiro de Freitas, primeiro barão da Lagoa, que adquiriu a chácara e construiu, em 1849, uma casa “à maneira neoclássica de Grandjean de Montigny” (Magalhães, 2013, p. 7). Em 1879, foi comprado por Albino de Oliveira Guimarães e vendido, em 1890, para John Roscoe Allen e sua mulher, Grace Willian Allen. Foi em 1893, que Rui Barbosa adquiriu a residência que seria ocupada por sua família em seu retorno do exílio voluntário de dois anos na Inglaterra, em virtude de sua intensa oposição ao governo de Floriano Peixoto. Durante sua estada no exterior foram realizadas reformas e adaptações na construção pela firma do arquiteto Antônio Jannuzzi, orientadas por Rui Barbosa através de cartas (Magalhães, 2013, p. 11). De volta ao Brasil, em 1895, instalou-se na propriedade ao lado de sua mulher, Maria Augusta, e seus cinco filhos. Nesse local, que receberia o nome de vila Maria Augusta, em 1897, em homenagem a sua esposa (Silveira, 2016, p. 94), Rui Barbosa passou os últimos anos de sua vida, até sua morte em 1° de março de 1923.
Nesse ano, o amigo e senador Antônio Francisco de Azeredo apresentou projeto, que recebeu emendas do senador Irineu Machado, que autorizava a União a comprar a casa com o “mobiliário, a biblioteca, o arquivo, os manuscritos e as obras inéditas de Rui Barbosa” (Magalhães, 2013, p. 12). O projeto contou com a concordância de Maria Augusta, que apoiava a ideia de preservação da casa e do legado de Rui Barbosa, ainda que tenha tido prejuízo financeiro com a venda para o governo federal (Magalhães, 2013, p. 12). A grandiosidade do funeral de Rui Barbosa expressou a comoção causada por sua morte, com a realização de cortejos cívicos com ampla participação das autoridades e populares em vários estados. Estes rituais fúnebres-cívicos contribuíram para a consagração de Rui Barbosa como herói nacional, imortalizado como um construtor da nação (Gonçalves, 2000).
Em 1924, o decreto legislativo n. 4.789, de 2 de janeiro, autorizou o governo federal a adquirir a casa, juntamente com o mobiliário, a biblioteca, o arquivo, os manuscritos e a propriedade intelectual das obras de Rui Barbosa. Ficava determinado que no local seria estabelecido um museu-biblioteca, prevista ainda a nomeação de comissão de três membros, “escolhidos dentre os mais notáveis homens de ciências jurídicas e literárias, para examinar, catalogar e classificar as obras existentes na referida casa” (Brasil, 1924a, p. 328). Para isso, foi permitida a abertura de um crédito especial pelo decreto n. 16.651, de 23 de outubro de 1924, que efetivava a negociação, mas excluía, mediante acordo, o mobiliário, com exceção das estantes (Brasil, 1924b, p. 22.954). Na verdade, o crédito autorizado não foi todo empregado na negociação pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores, João Luís Alves, adversário político de Rui Barbosa, motivo da exclusão do mobiliário original. Somente em 1928, pelo decreto n. 5.566, de 5 de novembro de 1928, o presidente Washington Luís despendeu o saldo do crédito aprovado em 1924, para aquisição do mobiliário (Magalhães, 2013, p. 13; Brasil, 1928b, p. 23.855).
Rui Barbosa foi o primeiro homem público brasileiro a ter seu espaço privado transformado em museu, e sua residência foi o primeiro museu-casa fundado pela esfera pública no país (Magalhães, 2013, p. 13; Ribeiro, 2016, p. 54). O processo de criação do museu-casa de Rui Barbosa ocorreu no contexto de afirmação do nacionalismo, em que a redescoberta do país e a valorização do passado foram mobilizadas numa reinterpretação da história nacional, o que iria conferir relevância ao debate em torno da noção de patrimônio (Motta, 1992). Um museu-casa difere de outros tipos de museus não somente por sua coleção de objetos em exposição, mas pela conexão intrínseca destes elementos com o cotidiano dos que habitavam a residência, por sua “relação de pertencimento ao universo do antigo morador” (Silveira, 2016, p. 32). Assim, a musealização da casa de Rui Barbosa tornou-a um patrimônio histórico e se deu em virtude da entronização de seus feitos e da glorificação de sua atuação política.
Por outro lado, a proposta de estabelecer um museu-casa de Rui Barbosa esteve em consonância com os projetos de preservação do patrimônio no Brasil, que teve marcos importantes na década de 1920, quando se elaboraram os primeiros projetos de lei a esse respeito, ainda que a maior parte tenha fracassado ou tido um alcance limitado (Pinheiro, 2006). Essa preocupação com o patrimônio esteve integrada às mudanças experimentadas nesse período, em que novos padrões de modernidade se impuseram, numa crítica aos valores identificados com o atraso que caracterizariam a sociedade brasileira, debate que iria conferir os contornos da ação do Estado na década de 1930 (Chuva, 2003).
O panorama político e ideológico desse período foi formatado no contexto do final da Primeira Guerra Mundial, em que questões como crise econômica, industrialização, expansão dos centros urbanos, imigração, avanço do proletariado e da organização sindical colocavam em cenas novos atores e apontavam para a necessidade de profundas mudanças, pressionando a estrutura do Estado oligárquico (Granzieira, 1997). A identificação dos entraves estruturais do Brasil colocava em evidência o embate entre o que se identificava como tradição e a modernidade, os intelectuais assumiam a missão de modernizar o país e, inspirando-se em ideais difusos, procuravam formular projetos de transformação da sociedade (Lahuerta, 1997). Assim, se a luta pela educação e saúde pública, consideradas os grandes problemas nacionais, constituíram a centralidade do debate político em torno da formação do Brasil ‘moderno’, a Semana de Arte Moderna de 1922 se tornou o grande marco simbólico de ruptura com o padrão cultural vigente.
Foi nesse contexto, de afirmação nacionalista e da gênese de um país moderno, que mobilizaria várias gerações (Lahuerta, 1997, p. 93), que se constituiu o museu-casa de Rui Barbosa. Adquirida pelo governo federal em 1924, a casa permaneceu fechada durante um longo período, chegando mesmo a ser avaliada a possibilidade de seu uso como escola e tendo perdido uma parte de seu jardim, o que foi revertido graças à intervenção do presidente Washington Luís (Magalhães, 2013, p. 13). De 1926 a 1930, houve o esforço de recompor a casa, conforme sua ambiência, com a compra do mobiliário e a reconstituição do terreno original, para que o museu-casa cumprisse com sua finalidade (Silveira, 2016, p. 90).
Em 1927, pelo decreto 17.758, ficou aprovado o regulamento do Museu Rui Barbosa. Subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, contava com um conservador, um auxiliar, que deveriam residir na propriedade, dois serventes e um jardineiro. No ano seguinte, o decreto n. 18.767 estabelecia a denominação de Casa de Rui Barbosa para o “museu-biblioteca”. O ato criava o lugar de zelador, com a função de administrar a instituição, publicava o quadro de vencimentos e autorizava a abertura de créditos para o pagamento do pessoal, obras urgentes do edifício e custeio das despesas do material. O ato revigorava os arts. 2°, 3° e 5° do decreto n. 4.789, de 2 de janeiro de 1924, que tratava sobre a organização do catálogo da biblioteca e do museu, bem como a classificação das obras publicadas ou inéditas de Rui Barbosa, que deveriam ser editadas pelo órgão. No ano seguinte, no decreto n. 18.767, o museu-casa já tem a denominação de Casa de Rui Barbosa (Brasil, 1928, p. 52).
Finalmente, em 13 de agosto de 1930, a Casa de Rui Barbosa foi inaugurada pelo presidente Washington Luís, dois meses antes da Revolução de 1930. As dependências do museu foram nomeadas conforme a atuação e trajetória política de Rui Barbosa: salas Constituição, Federação, Buenos Aires, Civilista, Pró-Aliados, Haia, Questão Religiosa, Abolição, Estado de Sítio, Instrução Pública, Queda do Império; no Direito, salas Habeas Corpus, Casamento Civil, Código Civil, Dreyfus; na vida familiar, salas Bahia, Maria Augusta, João Barbosa.
Com a chegada de Getúlio Vargas à presidência da República e a instalação do governo provisório, em 3 de novembro de 1930, teve início uma reforma administrativa e a criação de duas novas pastas, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Ministério da Educação e Saúde Pública, para o qual seria transferida a Casa de Rui Barbosa, pelo decreto n. 19.444, de 1º de dezembro de 1930.
Dilma Cabral
Louise Gabler
Jun. 2022
Fontes e bibliografia
ABREU, Roberto da Silva. Eu não sabia que podia entrar: com a palavra, o visitante do Museu Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: CPDOC, 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2009.
BRASIL. Decreto legislativo n. 4.789, de 2 de janeiro de 1924. Autoriza o Poder Executivo a adquirir a casa em que residiu o senador Rui Barbosa, com mobiliário, biblioteca, arquivo etc. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 5 jan. 1924a. Seção 1, p. 328.
______. Decreto n. 16.651, de 23 de outubro de 1924. Abre ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o crédito especial de 2.965:000$, para pagamento, em apólices da dívida pública interna, das despesas com a aquisição da propriedade intelectual das obras do senador Rui Barbosa e da casa em que o mesmo residiu, nesta cidade, com a biblioteca, os manuscritos e o arquivo. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 26 out. 1924b. Seção 1, p. 22.954.
______. Decreto n. 17.758, de 4 de abril de 1927. Cria o Museu Rui Barbosa e aprova o seu regulamento. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 21 abr. 1927. Seção 1, p. 9.238.
______. Decreto legislativo n. 5.429, de 9 de janeiro de 1928. Cria a Casa de Rui Barbosa. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 52, 1928a.
______. Decreto n. 5.566, de 5 de novembro de 1928. Autoriza o Poder Executivo a expender a quantia de 350:000$000, para atender à aquisição do mobiliário que pertenceu a Rui Barbosa e a despesas complementares da instalação da "Casa de Rui Barbosa". Diário Oficial da União. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 7 nov. 1928b. Seção 1, p. 23.855.
______. Decreto n. 18.767, de 27 de maio de 1929. Aprova o regulamento da Casa de Rui Barbosa. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 3, p. 394-396, 1930.
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Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_23 Decretos do Executivo - Período Republicano
BR_RJANRIO_J8 Relatórios Diversos
Referência da imagem
Arquivo Nacional, Fundo Virgílio Várzea, BR_RJANRIO_ST_0_FOT_0047