Vista do Rio de Janeiro, em litografia do livro Brasil: terra e gente, de Oscar Cansttat, publicado na década de 1870.
Vista do Rio de Janeiro, em litografia do livro Brasil: terra e gente, de Oscar Cansttat, publicado na década de 1870.

A Divisão Militar da Guarda Real da Polícia do Rio de Janeiro foi criada pelo decreto de 13 de maio de 1809, com a finalidade de prover a segurança e a tranquilidade pública da Corte. De acordo com esse ato, o estabelecimento de uma força militarizada permanente se deu em função do crescimento populacional da cidade, oriundo tanto da vinda da corte portuguesa para o país, em 1808, quanto do aumento da atividade comercial e do afluxo de negócios.

Na década de 1820, a figura do capitão-do-mato – um caçador de recompensa, que, desde meados do século XVII, era parte importante do sistema de controle de escravos no Brasil – seria extinta no Rio de Janeiro. Durante a organização do aparato burocrático na América portuguesa nos séculos XVII e XVIII, uma prática administrativa comum era a concessão de cargos e ofícios a particulares, tais como os cobradores de impostos autorizados pelo governo, que recebiam de acordo com os impostos recolhidos, ou as concessões a particulares para a construção de estradas com cobrança de pedágio. Entretanto, esses capitães-do-mato, sem qualquer organização, regulamento ou disciplina, geravam problemas de diversas ordens, como a extorsão ilegal de senhores, o sequestro de escravos, e até mesmo organizavam-se em bandos aos redores da cidade para cometerem delitos, o que levou as elites à necessidade de eliminá-los de sua estrutura policial.

Outro grande problema dessa organização ‘protopolicial’ era a impossibilidade de mantê-los enquanto um corpo sólido, para ataques a grandes quilombos, por exemplo, em razão de sua autonomia. A Guarda Real, desde sua criação, vinha cumprindo bem essa tarefa em incursões aos morros das cercanias da cidade, sob o comando do famoso major Vidigal. A partir, então, dos anos de 1820 na cidade do Rio de Janeiro, a tarefa de controle dos escravos fugidos ou desordeiros seria transferida exclusivamente aos soldados da Divisão Militar da Guarda Real, sendo essa a sua principal tarefa no período.

Embora o texto legal colocasse que a Guarda Real seria composta por voluntários, o recrutamento à força era comum. Tal fato acarretava um grande número de indivíduos levados à profissão militar involuntariamente, ocasionando uma baixa qualidade de seus quadros. Não era rara a existência de guardas sem a menor condição de servir ao corpo, com doenças físicas e mentais, inclusive. Um quadro composto por um grande número de policiais forçados ao serviço era comumente assaltado pela indisciplina, que, por sua vez, eram punidas com rigorosos castigos. Entretanto, tais punições eram executadas [mais comumente] por indisciplina interna ou em casos de agressão a outros policiais, e não por violência cometida em serviço contra a população (BRETAS, 1998, pág. 231). O recrutamento forçado também era encarado como uma estratégia civilizacional para as populações consideradas perigosas por parte das elites imperiais, através da disciplina do serviço militar. O processo de “fabricação do soldado” deveria docilizar essas populações. (BANDEIRA, 2008, p. 6).

Recrutamentos forçados e violência contra a população geravam um quadro de resistências à profissão militar. O arbítrio dos policiais na resolução dos conflitos e questões cotidianas estavam muitas vezes vinculadas a acordos pessoais, buscas de favores, estando a racionalidade burocrática muito distante de nortear os procedimentos policiais (BRETAS, 1998, p. 231). Essa forma de recrutamento nos estratos sociais mais baixos da população fazia com que muitas vezes fosse tecida uma rede de solidariedade com aqueles que, de acordo com o projeto imperial, deveriam reprimir, fossem escravos, ou homens livres pobres.

Um desses momentos de reconhecimento para com aqueles a quem deveriam reprimir ocorreu em julho de 1831. No conturbado contexto da abdicação de d. Pedro I, onde as ruas da Corte tornaram-se palco de diversos motins e distúrbios populares, soldados do 26º Batalhão de Infantaria do Exército amotinaram-se e, após controlada a rebelião, o governo da Regência decidiu por transferi-los para longe da capital. Em 14 de julho, enquanto os rebeldes do 26º Batalhão eram transportados para longe do Rio de Janeiro, os soldados da Guarda Real, contrariando seus superiores, deixaram os quartéis e tomaram as ruas de assalto, saqueando lojas, atacando os passantes e matando diversas pessoas, marchando, em seguida, para o Campo de Santana, acompanhados de diversos civis defensores do liberalismo radical e do nativismo antilusitano. Outras unidades do Exército, chamadas para reprimir essa multidão, abandonaram suas formações e engrossaram as forças da rebelião. Formando uma multidão de cerca de 4 mil pessoas, desafiavam as autoridades constituídas e exigiam a volta do 26º Batalhão para a Corte e o fim dos castigos físicos para os militares.

Tendo o motim da Divisão Militar da Guarda Real de Polícia funcionado como estopim dessa rebelião popular que tomou grande dimensão, a Assembleia Geral resolveria em 17 de julho por dissolvê-la, redistribuindo seus oficiais pelas unidades do Exército e dispensando os praças do serviço, enviando-os de volta para suas províncias de origem por conta do governo. A rebelião enfraqueceria e, no dia 20 de julho, a Regência conseguiria organizar forças suficientes para debelar os rebeldes que ainda se encontravam no Campo de Santana. Uma nova força militarizada, destinada a policiar a Corte seria organizada somente em 10 de outubro de 1831, com a criação do Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte.


Felipe Almeida
20 out. 2014


Bibliografia
ALMEIDA, Fortunato. Organização político-administrativa portuguesa dos séculos XVII e XVIII. In: HESPANHA, António M. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Gulbenkian, 1984. p. 321-394.

BANDEIRA, Fabiana Martins. Fardados e disciplinados: recrutamento e enquadramento social na Armada Imperial e na Polícia da Corte (1870-1889). In: XIII Encontro de História Anphu Rio, 2008, Seropédica RJ. Anais do XIII Encontro de História Anphu Rio, 2008.

BARRETO FILHO, Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: aspectos da cidade e da vida carioca, 1565-1831. Rio de Janeiro: A Noite, 1939.

BRASIL. Decreto de 13 de maio de 1809. Cria a Divisão Militar da Guarda Real da Polícia no Rio de Janeiro. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 54-63, 1891.

____. Lei de 10 de outubro de 1831. Autoriza a criação de corpos de Guardas Municipais voluntários nesta cidade e províncias. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, parte 1, p. 129-130, 1875.

BRETAS, Marcos Luiz. A polícia carioca no Império. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 219-234, 1998. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/247.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2008.

GONÇALVES, Cândido Gonçalo Rocha. A construção de uma polícia urbana (Lisboa, 1890-1940): institucionalização, organização e práticas. Dissertação (Mestrado) – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa, 2007. Disponível em: <http://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/632/1/A+Construção+de+uma+Polícia+Urbana.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2008.

HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Trad. Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1997.

PORTUGAL. Alvará de 25 de junho de 1760. Criação da Intendência Geral da Polícia e seu regulamento. Coleção da legislação portuguesa desde a última compilação das ordenações redigida pelo desembargador Antônio Delgado da Silva. Legislação de 1750-1762, Lisboa, p. 759-65, 1830. Disponível em: <http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt>. Acesso em: 4 jun. 2007.

REIS, Marcos de Freitas. A Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil: os termos de bem viver e a ação de Paulo Fernandes Viana. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTÓRICA, 2., Rio de Janeiro. Anais… São Paulo: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 1983. p. 95-105.


Documentos sobre o órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional

BR AN,RIO 22 – Decretos do Executivo – Período Imperial
BR AN,RIO 2H – Diversos – SDH – Caixas
BR AN,RIO NP – Diversos – SDH – Códices
BR AN,RIO OG – Ministério da Guerra
BR AN,RIO 4T – Ministério da Justiça e Negócios Interiores
BR AN,RIO 0E – Polícia da Corte
BR AN,RIO 9K – Série Guerra – Administração (IG2)
BR AN,RIO 9V – Série Guerra – Quartéis (IG8)


Referência da imagem

Oscar Canstatt. Brasilien: Land und leute. Berlin: Ernst Siefried Mittler und Sohn, 1877. OR_1875

 

Este verbete refere-se apenas à trajetória do órgão no período imperial. Para informações entre 1808 e 1821, consulte o verbete no Dicionário de Administração Colonial através do link: Divisão Militar da Guarda Real da Polícia do Rio de Janeiro