A lei n. 105, promulgada em 12 de maio de 1840, teve por objetivo interpretar alguns dos artigos da revisão constitucional promovida pelo Ato Adicional em 1834. Considerada por parte da historiografia como um dos marcos legais da reação conservadora às reformas liberais promovidas a partir da década de 1830, a questão suscita um intenso debate sobre o significado e o alcance do rearranjo político-institucional e o grau de centralização que resultou na Lei de Interpretação e na reforma do Código de Processo Criminal, em 1841.
A disputa entre liberais e conservadores, e o debate em torno da maior autonomia das províncias, ganhou novas cores com a crise política deflagrada pela abdicação de d. Pedro, em 1831. O Ato Adicional deu início a um período de mudanças significativas na arquitetura institucional do Estado ao distinguir as atribuições dos governos central e provinciais, garantindo maior autonomia regional. Mas o período regencial (1831-1840) foi marcado também por revoltas em diferentes províncias, como a Farroupilha no Rio Grande do Sul (1835-1845), a Cabanagem no Pará (1835-1840), a Balaiada (1838-1841) no Maranhão e a Sabinada (1837-1838) na Bahia, além de revoltas escravas como a dos malês, também na Bahia (1835). A instabilidade política decorrente destas revoltas, associada à maior descentralização e ao crescimento do poder local, fez crescer a tese de que somente uma revisão do liberalismo e da experiência federalista iniciada pelo Ato Adicional poderia preservar o regime monárquico constitucional.
Assim, a renúncia de Diogo Antônio Feijó conduziu à regência Pedro Araújo Lima, em 1837, e assinalou a ascensão do Partido Conservador, dando início ao chamado Regresso. Como parte do projeto de assegurar a centralização político-administrativa, a revisão conservadora se consolidou com a Lei de Interpretação do Ato Adicional, em 1840, seguida pelo restabelecimento do Conselho de Estado e a aprovação da lei de Reforma do Código de Processo, ambos em 1841. No entanto, ainda que este arcabouço legal tenha assegurado o fortalecimento do governo central e, por conseguinte, revisse algumas das atribuições que o Ato Adicional conferiu às províncias, a historiografia sobre o período diverge quanto à dimensão e ao significado do Regresso no rearranjo da organização político-institucional dos governos locais, questionando se as medidas empreendidas neste contexto teriam de fato subordinado as províncias ao governo central, restringido a autonomia administrativa, orçamentária e fiscal que o Ato Adicional assegurara aos governos locais.
O artigo 25 do Ato Adicional definiu que em “caso de dúvida sobre a inteligência de algum artigo”, cabia ao Poder Legislativo interpretá-lo, alternativa que ganhou espaço a partir do embate político travado entre as assembleias provinciais e o governo central, especialmente em função de questões pontuais como a organização do Judiciário e os empregos gerais (DOLHNIKOFF, 2005). Além disto, o quadro das revoltas provinciais corroborou a necessidade de revisão da repartição do poder entre governo central e províncias. Colocavam-se em discussão os artigos 10 e 11 do Ato Adicional, que tratavam das atribuições das assembleias provinciais, notadamente no tocante à administração e organização da Justiça.
Não por acaso o primeiro artigo da Lei de Interpretação definiu que a competência das assembleias provinciais se resumiria à polícia e à economia municipal, o que não incluía a polícia judiciária. Logo, as assembleias legislativas perdiam a prerrogativa exclusiva do governo central de administrar a polícia, o que seria complementado pela supressão da responsabilidade de alterar a natureza e as atribuições dos empregos municipais e provinciais, quando estabelecidos por leis gerais, cabendo-lhes legislar sobre o número dos mesmos empregados. A Lei de Interpretação definiu também que o poder dos presidentes de província de nomear, suspender e demitir os empregados provinciais referia-se apenas àqueles cuja função era legislar, não incluindo os criados por leis relativas a objetos da competência do Poder Legislativo Geral. Com isso, as assembleias provinciais ficavam destituídas do poder de decretar a suspensão ou demissão de magistrados das relações e tribunais superiores.
Assim, saía da alçada das assembleias provinciais a organização do Judiciário, processo que seria concluído em 1841, com a reforma do Código do Processo Criminal. A partir de então, o juiz de paz, cargo de natureza leiga e eletiva que reforçava o poder local, teve esvaziadas suas funções judiciais e criminais, transferidas para os chefes de polícia, os delegados e os juízes municipais. O chefe de polícia, funcionário do Estado e nomeado pelo imperador, escolhido dentre a magistratura profissional, subordinava todas as autoridades policiais nas províncias e na Corte. O Tribunal do Júri também teve alterados os critérios para sua composição, ficando sob a direção do juiz de direito, além de ter reduzidas suas atribuições. Assim, a arquitetura descentralizada da Justiça, prevista pelo Código do Processo Criminal em 1832, foi substituída pela centralização do seu aparato em 1841, ficando as províncias destituídas do poder sobre os assuntos da Justiça e da polícia, que passaram para a alçada do Executivo central, subordinados à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça.
A Lei de Interpretação previa que as assembleias provinciais funcionariam como tribunais de Justiça na suspensão ou demissão dos magistrados contra quem houvesse queixa de responsabilidade, observando a forma de processo e a norma de execução. Ficava ainda estabelecido que o presidente da província estivesse autorizado a recusar dar sanção a um projeto aprovado pela assembleia provincial, conforme o artigo 16 do Ato Adicional, por inconstitucionalidade. E, finalmente, definiu-se que as leis provinciais que estivessem em desacordo com a Lei de Interpretação não estavam revogadas por sua promulgação, o que se daria apenas por ato expresso do Poder Legislativo Geral.
A Lei de interpretação, ao lado da Reforma do Código de Processo e do restabelecimento do Conselho de Estado, definiu a moldura político-institucional do Segundo Reinado (1840-1889), assegurando a adequação da autonomia provincial às prerrogativas do governo imperial e trazendo para o Executivo e o Conselho de Estado a administração da polícia e da Justiça, bem como os empregos voltados ao exercício das atribuições do poder central. Sua promulgação fez parte de uma ampla negociação entre diferentes grupos políticos e, ainda que não revisse a autonomia concedida às províncias pelo Ato Adicional, mantendo o pacto federalista, promoveu os recuos necessários à manutenção da unidade e da integridade político-institucional da monarquia brasileira diante da conturbada conjuntura política e social ocorrida durante o período regencial.
Dilma Cabral
28 maio 2014
Bibliografia
COSER, Ivo. (2008), Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil (1823-1866). Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Editora da UFMG/Iuperj, 2008.
CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Relume Dumará, 1996. 2.a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo, Hucitec/ INL, 1987.
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.
Referência da imagem
S. A. Sisson. Galeria dos brasileiros ilustres. Brasília: Ed. Senado Federal, 1999, v. 1. ACG14793