Gravura de d. Pedro I, o imperador responsável pela instituição do Poder Moderador no Brasil.
Gravura de d. Pedro I, o imperador responsável pela instituição do Poder Moderador no Brasil.

A Constituição de 1824 consagrou no Brasil a separação dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e incluiu nesse quadro o Poder Moderador, definido como “a chave de toda a organização política” do Império (BRASIL. Constituição (1824), art. 98). Ao soberano cabia a chefia dos poderes Executivo e Moderador, “para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos” (BRASIL. Constituição (1824), art. 98).

No exercício do Poder Moderador, o imperador tinha a prerrogativa de nomear os senadores, convocar extraordinariamente a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral, aprovar e suspender interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogar ou adiar a Assembleia Geral, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente os ministros de Estado, suspender os magistrados nos casos previstos, perdoar e moderar as penas impostas e os réus condenados por sentença e conceder anistia. (BRASIL. Constituição (1824), art. 101).

Princípio caro ao liberalismo do século XIX, o constitucionalismo expressou o rompimento com o absolutismo e o estabelecimento de um novo pacto político, que redefiniu e regulou as relações entre o soberano e a nação. A experiência constitucional brasileira de 1824 teve como matriz teórica a Constituição francesa de 1814 e as teses defendidas pelo publicista franco-suíço Benjamin Constant, já expressas em pensadores como Montesquieu e o abade Sieyès. Preocupado em enfrentar o absolutismo monárquico e os excessos do governo jacobino, Constant teorizou sobre a organização da monarquia constitucionalista liberal e retomou a reflexão sobre o estabelecimento de um poder neutro ou real, a ser conferido ao soberano, responsável por resguardar o equilíbrio e o sistema político e que funcionasse acima dos outros poderes, zelando por suas relações e pela observância às leis. Suas ideias vieram a público no Principes de Politique applicables à tous les gouvernments répresentatifs et particulièrement à la constituition actuelle de la France, publicado em 1815, em Paris.

Foi esse o fundamento que orientou a modelagem do Estado brasileiro e esteve no centro dos trabalhos da Assembleia Constituinte, onde a função a ser desempenhada pelo imperador numa ordem constitucional mobilizou as discussões sobre o poder neutro, sua natureza e limites na organização político-institucional do Império. Nomes como os de Carlos de Andrada Machado, José Joaquim Carneiro de Campos e João Severiano Maciel da Costa, estiveram à frente deste debate, defendendo sua instituição no arranjo da monarquia constitucional brasileira.

A oposição à inclusão de um poder moderador assinalou um dos pontos de tensão da Assembleia Constituinte com d. Pedro I, que não aceitava o papel reduzido que o constitucionalismo liberal parecia lhe reservar. Dissolvida a assembleia em 12 de novembro de 1823, no dia seguinte foi criado o Conselho de Estado, com a tarefa de elaborar uma constituição para o país. Tendo por base o projeto em discussão na Assembleia Constituinte por ocasião de sua dissolução, a Constituição outorgada pelo imperador incorporou mudanças significativas na arquitetura institucional do Estado, como a criação do Poder Moderador.

Foram reconhecidos quatro poderes políticos: Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial. Configurado como uma delegação da nação “com a sanção do imperador”, o que denota caráter da centralização política na figura do soberano, o Legislativo organizava-se em duas câmaras, a de Deputados e o Senado. O Executivo concentrava amplos poderes e era uma prerrogativa do monarca, cuja chefia seria exercida através dos seus ministros de Estado, sendo a sua figura inviolável e sagrada (BRASIL. Constituição (1824), art. 99). O Poder Judiciário seria composto pelos juízes de direito, jurados, relações provinciais e o Supremo Tribunal de Justiça, além dos juízes de paz, cuja criação era prevista pela Carta Magna (BRASIL. Constituição (1824), art. 151 e 163).

A Constituição, ao estabelecer o Poder Moderador conferiu ao imperador um importante instrumento que lhe permitia intervir em caso de conflitos interinstitucionais, assegurando sua preponderância sobre os demais poderes.

Assim, a concepção da separação de poderes como limite à atuação do Executivo sofreria os ajustes necessários à construção de uma nova ordem, com a garantia de um Legislativo e um Judiciário independentes do controle real e da soberania da nação centrada no cidadão, transformada em fonte de poder e autoridade sob o constitucionalismo liberal novecentista.

A chefia do Poder Executivo cabia ao imperador, e o exercício aos ministros de Estado, que eram os responsáveis pela assinatura e execução dos atos emanados deste poder (BRASIL. Constituição (1824), art. 132). A inviolabilidade da pessoa do imperador era a garantia de manutenção de ordem em caso de conturbações, além de assegurar a imunidade das instituições imperiais e do estado civil de direito. Desta maneira, a responsabilidade das ações do governo recaía sobre os ministérios, que, através do Poder Moderador, podiam ser dissolvidos pelo imperador nos momentos de crise político-institucional. Essa questão foi regulamentada pela lei de 15 de outubro de 1827, que definiu os crimes e regulou os processos de responsabilidade dos ministros e conselheiros de Estado, conferindo ao Senado a atribuição de julgá-los.

No caso do Legislativo, o imperador tinha o poder de sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral e conselhos provinciais, bem como convocar, prorrogar, adiar e dissolver a Câmara dos Deputados (BRASIL. Constituição (1824), art. 98). Assim, a sanção real conferia não apenas o controle do monarca sobre as decisões do Legislativo, mas limitava a soberania popular, que passava a ser partilhada entre o Legislativo e o Poder Moderador.

A Constituição incorporou do liberalismo instituições identificadas a um Judiciário independente, como o juiz de paz e o Tribunal do Júri, ainda que não tivesse definido sua organização. No entanto, o Judiciário teve igualmente sua autonomia cerceada, pois o soberano poderia suspender e remover os magistrados, bem como perdoar ou moderar as penas impostas nas sentenças e conceder anistia (BRASIL. Constituição (1824), art. 101, 151, 153 e 155).

O Conselho de Estado e o Poder Moderador estiveram intrinsecamente relacionados, o que colocou as duas instituições no centro do debate político ao longo de todo o período imperial. A necessidade de o soberano ouvir os conselheiros, em todas as ocasiões em que se propusesse a exercer as atribuições do Poder Moderador, acabou por acirrar a discussão acerca da conveniência do Conselho de Estado. Este quadro foi agravado com a renúncia do imperador ao trono brasileiro, em 1831, o que gerou o enfraquecimento das facções favoráveis ao centralismo político e à primazia do Poder Executivo sobre os demais.

A lei de 14 de junho de 1831 transferiu para a Regência algumas das atribuições do Poder Moderador, sendo que outras passaram a ser exercidas de forma cumulativa pelo ministro competente ou com a aprovação da Assembleia Geral. A Regência ficava impedida de dissolver a Câmara dos Deputados, conceder perdão aos ministros e Conselheiros de Estado, salvo a pena de morte, conceder títulos, honras, ordens militares, distinções e a anistia em caso urgente, nomear conselheiros de Estado, e dispensar as formalidades que garantiam a liberdade individual.

A Regência estava protegida da responsabilidade sobre os atos administrados praticados em nome do imperador, que se mantiveram imputados aos ministros (BRASIL. Constituição (1824), art. 129). No entanto, partilhar ou se ver impedida de exercer exclusivamente todas as atribuições do Poder Moderador reafirmava o caráter sagrado e inviolável da figura do soberano, que não podia ser transferido à Regência, ainda que esta governasse em seu nome. Em 1834 o Ato Adicional suprimiu o Conselho de Estado, mas manteve o Poder Moderador.

O restabelecimento pleno do Poder Moderador se deu com a antecipação da maioridade de d. Pedro II, em 1840, e foi seguido pela recriação do Conselho de Estado, no ano seguinte. A partir de 1841, a discussão sobre as relações entre Poder Moderador, Poder Executivo e Conselho de Estado, esteve centrada na questão da inviolabilidade do imperador e da responsabilidade de seus ministros. Contudo, foi a partir da década de 1860 que o debate em torno do Poder Moderador ganhou maior relevância, em um cenário onde a supremacia conservadora foi ameaçada, promovendo um rearranjo do cenário partidário.

É este o momento em que expoentes liberais e conservadores rediscutem o significado do Poder Moderador numa ordem constitucional, tornando-o objeto de debates na imprensa e de uma série de publicações como os livros Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império (1857), do conservador José Antônio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente; Da natureza e limites do poder moderador, do liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos, publicado em 1860 e reeditado em 1862; Do Poder Moderador (1864), de Braz Florentino Henriques de Souza; e Ensaio sobre Direito Administrativo (1862), de Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai.

Em 1868, a crise institucional desencadeada pela derrubada do gabinete liberal de Zacarias de Góis e Vasconcelos culminou no retorno dos conservadores num novo gabinete, liderado por Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí. A consequente dissolução da Câmara levou à crescente demanda por reformas políticas e econômicas e, a partir daí, a extinção das instituições identificadas com o edifício monárquico, especialmente o Poder Moderador, o Conselho de Estado e a Guarda Nacional, estiveram no mesmo quadro do debate em torno de temas como democracia, federalismo, abolição, autonomia das províncias, reforma eleitoral e relação Igreja e Estado. Tal cenário de crise e questionamento social conduziu ao colapso do regime monárquico constitucional e ao advento da República em 1889, que se encarregou de extinguir o Poder Moderador e promover um novo arranjo político-institucional.


Dilma Cabral
29 maio 2014

Bibliografia
BARBOSA, Silvana Mota. A sphinge monárquica: o poder moderador e a política imperial. 2001. 414 p. Tese (Doutorado) – UNICAMP. Campinas, 2001.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1989.

CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Relume Dumará, 1996. 2.a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder moderador no Brasil (1822-1824). Dados, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, Sept. 2005. Disponível em: ˂https://goo.gl/A4ADWi˃. Acesso em: 20 mar. 2013.

MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.


Referência da imagem

GRV 76