Chefe Bororo em prancha aquarelada do livro Expedition dans les parties centrales de l’Amerique du Sud, de Francis de la Porte, comte de Castelnau (1812-1880).
Chefe Bororo em prancha aquarelada do livro Expedition dans les parties centrales de l’Amerique du Sud, de Francis de la Porte, comte de Castelnau (1812-1880).

O cargo de diretor-geral dos índios foi criado pelo decreto n. 426, de 24 de julho de 1845, que aprovou o regulamento das missões de catequese e civilização indígenas. O cargo deveria ser estabelecido em todas as províncias brasileiras e tinha por atribuição administrar a implementação das medidas previstas no regulamento das missões, bem como o estabelecimento dos aldeamentos provinciais e a política de catequese e civilização dos indígenas.

Desde a revogação do chamado Diretório dos Índios (1757-1798), estabelecido inicialmente com o fim de organizar a administração e o governo dos indígenas do Pará e do Maranhão e estendido para todo o Brasil no ano seguinte, a questão indígena não recebera novo tratamento pelo governo imperial. O Diretório dos Índios fez parte das medidas implementadas durante a administração do marquês de Pombal (1750-1777), que, em 1755 restituiu a liberdade aos indígenas e excluiu os missionários do poder temporal da administração eclesiástica dos aldeamentos (CAMARGO, 2013). Em muitas regiões do Brasil o Diretório dos Índios, apesar de extinto, continuaria servindo de referência, já que o Estado não aprovaria novas diretrizes para a administração dos aldeamentos indígenas (SAMPAIO, 2008, p. 228).

Após a extinção do Diretório dos Índios, em 1798, não houve qualquer regulamentação geral para o tratamento da questão indígena, o que não significou necessariamente que a questão deixou de ser tratada pelo governo. Por ocasião da reunião das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (1821-1822), foram apresentados cinco projetos de deputados brasileiros sobre a questão indígena, sendo o de maior destaque o de José Bonifácio de Andrada e Silva, intitulado Apontamentos para a civilização dos indígenas bravos do Brasil. Esse projeto foi reapresentado, com algumas modificações, por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte de 1823, que suscitou, somente três anos mais tarde, um aviso destinado às diversas províncias que informassem a situação das populações nativas e apresentassem sugestões para um 'Plano Geral de Civilização dos Índios'. Fechada a Assembleia Constituinte pelo imperador d. Pedro I, a Constituição outorgada em 1824 não tratou da questão indígena (CUNHA, 1998, p. 138).

Somente em 1834, quando foi promulgado o Ato Adicional, a questão indígena recebeu um novo tratamento. O ato conferiu maior autonomia às províncias, atribuindo às assembleias legislativas o poder de legislar sobre uma gama variada de assuntos, cumulativamente com a assembleia e o governo geral, o que incluiu “a catequese, e civilização dos indígenas, e o estabelecimento de colônias” (BRASIL. Ato Adicional (1834), art. 5). Este reordenamento reviu o arranjo político-institucional centralizado e unitário definido pela Constituição de 1824, dando maior autonomia às elites locais. Isso significou que nas províncias onde a presença indígena era mais forte se legislasse em benefício dos interesses locais, verificando-se a elaboração de diretrizes próprias para o tratamento da temática, inclusive anti-indigenista (CUNHA, 1998, p. 138).

A partir de 1840, o tema da catequese e civilização dos indígenas voltou à pauta do governo imperial, conforme constatamos pelo orçamento aprovado em 1843, que liberava o gasto, pela Secretaria de Estado dos Negócios do Império, de verba determinada para a catequese e civilização dos indígenas, além de autorizar, ainda que fosse dado regulamento às missões (BRASIL, 1843, p. 25). No mesmo ano, o decreto n. 285 autorizou a vinda de missionários capuchinhos a serem distribuídos pelas províncias em missões, o que afetaria a ação do governo imperial na catequese e civilização dos índios, tratada como um “ramo do serviço público” (KODAMA, 2009, p. 244). Em 1844 o decreto n. 373, de 30 de julho, fixava as regras de distribuição dos missionários capuchinhos na Corte e províncias.

É importante observar que nesse período foi promulgada ainda a lei n. 105, de 12 de maio de 1840, considerada parte da reação conservadora às reformas liberais promovidas a partir de 1830, que definiu a moldura político-institucional do Segundo Reinado (1840-1889). A vinda dos missionários capuchinhos fez parte do processo de elaboração de uma política indigenista brasileira, tomada como tarefa pelo governo imperial, que apontava no sentido de maior centralização no projeto de integração do indígena à sociedade, e a consequente uniformização das diferenças no tratamento da questão pelas províncias. Mas, foi com o decreto n. 426, de 1845, que o governo imperial determinou como se regulamentavam as missões de catequese e civilização dos índios no país, onde administração religiosa e laica interagiam.

O decreto estabeleceu que em cada província houvesse um diretor-geral de índios, de nomeação do imperador, responsável pela administração das aldeias, pela relação com o respectivo presidente da província e assembleia provincial, além da comunicação com o governo imperial, através da Secretaria do Império. Dentre as amplas atribuições do diretor-geral estava o exame das aldeias existentes e dos recursos que ofereciam à lavoura e ao comércio, a verificação da adequação de sua localização ou da necessidade de remoção, o arrolamento de todos os indígenas aldeados, a identificação dos índios ‘errantes’ e o envio de missionários para sua catequese, o licenciamento dos que quisessem negociar nas aldeias criadas, servir de procurador dos índios e representar quando da necessidade de força militar para proteção das aldeias.

O Regulamento de 1845 perpetrava o sistema de aldeamentos, experimentado durante o Diretório pombalino, como estratégia de assimilação dos indígenas à ‘vida civilizada’. Para tanto, o texto legal previa práticas como a edificação de igrejas, a criação de escolas de primeiras letras, a promoção de casamentos entre indígenas e pessoas de outra raça e o ensinamento da doutrina cristã. O Regulamento das Missões determinava que a tática utilizada para integração do indígena à civilização deveria orientar-se por meios ‘brandos e suaves’, sem o uso da força ou violência. A finalidade era a conversão do indígena, ainda que a ‘política da brandura’ fosse sistematicamente negligenciada, constando dos relatórios oficiais a violência contra os índios na prática cotidiana dos aldeamentos (AMOROSO, 1998).

Nesse projeto de assimilação previa-se a premiação dos indígenas por ‘bom comportamento’ com terras fora das aldeias, mas a Carta de Sesmaria, que garantia sua propriedade, somente era concedida após doze anos ininterruptos de ‘de boa cultura’ (BRASIL, 1943, art. 1º, §15). As questões da terra e da colonização estiveram fortemente representadas no Regulamento das Missões, onde a catequese e a civilização dos índios relacionavam-se aos grandes temas enfrentados no cenário político do Segundo Reinado, como fim do tráfico negreiro, imigração e colonização (KODAMA, 2009).

O governo imperial enviou, em 1842, à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado a solicitação de formulação de um projeto de lei de terras, que foi elaborado por Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda, e que serviu de base à Lei de Terras aprovada em 1850. Procurava-se, pela primeira regulamentar a questão fundiária e acesso à terra no país, questões prementes quando se debatia a substituição da mão-de-obra escrava pela do imigrante (ALMEIDA, 2015).

O Regulamento das Missões manteve o direito do indígena às terras dos aldeamentos, prevendo sua demarcação, mas assegurou também a remoção ou reunião de duas ou mais aldeias, quando sua localização fosse considerada inadequada para a lavoura e o comércio. Ainda assim, o projeto assimilacionista que formatou o Regulamento das Missões garantiu o arrendamento e o aforamento das terras indígenas, cujas rendas deveriam ser empregadas em benefício dos indígenas das províncias. A questão das terras indígenas foi objeto da Lei de Terras (1850) e do decreto n. 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que deu as instruções à sua execução.

O Regulamento estabelecia a forma de organização e administração das aldeias, determinando uma estrutura bastante simples em cada uma, composta de: um diretor, de nomeação do presidente da província, a partir proposta do diretor-geral; um tesoureiro ou almoxarife; um cirurgião e um enfermeiro; e um missionário. As atribuições de cada cargo foram definidas pela legislação, cabendo ao diretor – também chamado de diretor parcial – funções similares às do diretor-geral no nível do aldeamento, o que incluía toda a administração local.

Ao tesoureiro ou almoxarife, nomeados pelo diretor, competia receber as verbas destinada às aldeias, os pagamentos, bem como a escrituração e contabilidade. O cirurgião era responsável pela botica e enfermaria, auxiliado por um enfermeiro, que seria um dos soldados pedestres. Por fim, havia o missionário, a quem caberia a instrução dos indígenas na doutrina cristã, além do ensino da leitura e da escrita (BRASIL, 1843). A nomeação de ocupantes para os cargos do tesoureiro ou almoxarife e do cirurgião dependeria da situação em que se encontrava a aldeia, sua importância e localização. Na prática o quadro de pessoal das aldeias não era preenchido integralmente, era comum que missionários assumissem a direção dos aldeamentos, ficando claro que não havia condições de as muitas províncias aplicarem o Regulamento de 1845.

Em 1860, pelo decreto n. 1.067, de 28 de julho, foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, responsável pelas atribuições incumbidas anteriormente às secretarias de Estado dos Negócios do Império e da Justiça. A criação da nova pasta pode ser relacionada à tentativa de racionalização administrativa do Estado, frente às importantes demandas surgidas na segunda metade do século XIX, como a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o comércio internacional de escravos (GABLER, 2014). Ficava a cargo da nova secretaria a “catequese e civilização dos índios e as missões e aldeamentos dos indígenas”, subordinados à Diretoria das Terras Públicas e Colonização.

A carência de verbas, a falta de missionários, os relatos de abusos de diretores e de escravização de indígenas, denúncias de avanço nas terras e expulsão de índios dos aldeamentos, a guerra com a população branca, seguida pela fuga e abandono de aldeias, além de doenças, dificultaram a execução do projeto do governo imperial de catequização e civilização do indígena, que em cada província assumiu contornos específicos (SAMPAIO, 2009; KODAMA, 2009). E ainda, a inadaptação da população indígena à catequese e à ‘educação para o trabalho’, promovida pelos missionários, comprometeu a política indigenista de assimilação, permeada por conflitos e resistências.

O modelo do indigenismo que vigorou após o Regimento das Missões associou catequese e civilização e integrou o processo de construção da nação brasileira, segundo um padrão que se pretendia europeu, onde não caberiam as pluralidades étnicas e culturais indígenas (ALMEIDA, 2010). O Regimento das Missões foi a base legal da política indigenista empreendida pelo governo imperial em todo o território nacional na segunda metade do século XIX, executada pela Diretoria Geral dos Índios até a queda do regime monárquico em 1889. Com a República, o decreto n. 7, de 20 de novembro de 1889, dissolveu as assembleias provinciais e fixou provisoriamente as atribuições dos governadores dos estados, determinando que a catequese e a ‘civilização’ dos indígenas saíssem da esfera do governo federal. Assim, aos estados coube o direito à função de estabelecer e administrar os aldeamentos indígenas, bem como decidir a respeito das terras existentes em seus territórios.

 

Dilma Cabral
13 jul. 2016


Bibliografia

ALMEIDA, Felipe. Lei de Terras. In: Dicionário Online da Administração Pública Brasileira do Período Imperial (1822-1889). Disponível em: <https://goo.gl/Q17Aiu> Acesso em: 21 jun. 2016.

ALMEIDA, M. Regina Celestino de. Etnicidade e Nacionalismo no Século XIX. In: ____. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p. 135-167.

AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinhos. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 13, n. 37, p. 101-114, jun. 1998. Disponível em: <https://goo.gl/jWjyrh>. Acesso em: 13 jun. 2016.

BRASIL. Decreto n. 285, de 24 de junho de 1843. Autoriza o governo para mandar vir da Itália missionários Capuchinhos, distribuí-los pelas províncias em missões; e concede seis loterias para aquisição ou edificação de prédios, que sirvam de hospícios aos ditos missionários. Disponível em: <https://goo.gl/YNsaNm>. Acesso em: 3 jun. 2016.

____. Lei n. 317, de 21 de outubro de 1843. Fixando a Despesa e orçando a Receita para os exercícios de 1843-1844 e 1844-1845.  Disponível em: <https://goo.gl/6obae4>. Acesso em: 3 jun. 2016.

____. Decreto n. 426, de 24 de julho de 1845. Contém o Regulamento acerca das missões de catequese e civilização dos índios. Disponível em: <https://goo.gl/QBv5v4>. Acesso em: 3 jun. 2016.

____. Decreto n. 2.748, de 16 de fevereiro de 1861. Organiza a Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Disponível em: <https://goo.gl/pNc9h2>. Acesso em: 3 jun. 2016.

CAMARGO, Angélica Ricci. Diretório dos Índios. In: Dicionário Online da Administração Pública Brasileira do Período Colonial (1500-1822). Disponível em: <https://goo.gl/wCQVkC> Acesso em: 13 jul. 2016.

CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) et al. História dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.

PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Construindo o estado da exclusão: os índios brasileiros e a Constituição de 1824. Disponível em: <https://goo.gl/JA6GRq>. Acesso em: 6 jun. 2016.

____. Formando trabalhadores: missões e missionamentos capuchinhos na Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo (1845-1890). In: Lígia Bellini, Antonio Luigi Negro e Evergton Sales Souza. (Org.). Tecendo histórias. Espaço, política e identidade. Salvador: Edufa, 2010, v. 1, p. 20-35.

SAMPAIO, P. Política Indigenista no Brasil Imperial In: GRINBERG, K. e SALLES, R. H., Coleção Brasil Imperial, 2009, p. 177-206.

 

Referência da Imagem
Francis de la Porte, comte de Castelnau. Expedition dans les parties centrales de l’Amerique du Sud, de Rio de Janeiro a Lima, et de Lima au Para: executée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 a 1847. Paris: Chez P. Bertrand, Libraire-E’diteur, 1850-1857. OR_1912