Cirurgião negro colocando ventosas, em imagem litografada incluída no livro Viagem pitoresca, publicado em 1839, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848)
Cirurgião negro colocando ventosas, em imagem litografada incluída no livro Viagem pitoresca, publicado em 1839, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848)

O cargo de cirurgião-mor do Reino, Estados e domínios ultramarinos foi estabelecido pelo decreto de 7 de fevereiro de 1808, durante a estada da corte portuguesa na Bahia, tendo sido nomeado o médico brasileiro José Correia Picanço, cirurgião da Casa Real e deputado da Real Junta do Protomedicato.

Em Portugal, o lugar de cirurgião-mor do Reino foi criado durante o reinado de Afonso III (1245-1279), mas só recebeu regulamento próprio em 25 de outubro de 1448, ficando responsável pela direção e fiscalização das artes físicas e cirúrgicas. A carta régia de 25 de fevereiro de 1521 separou e definiu as atribuições do cirurgião-mor e do físico-mor, cargo instituído em 1430 e cujas atribuições envolviam os negócios de higiene e saúde em todo o Reino e domínios ultramarinos. Seguiram-se novas regulamentações para o cirurgião-mor e o físico-mor, até serem extintos pela lei de 17 de junho de 1782, com a formação da Junta do Protomedicato, que assumiu e centralizou estas atribuições.

No Brasil, a fiscalização do exercício da medicina durante o período colonial foi desempenhada pelos delegados ou juízes comissários do cirurgião-mor do Reino, já que o regimento de outubro de 1448 tornou necessária a carta de examinação para a prática da cirurgia. Os cirurgiões comissários do cirurgião-mor constituíam juntas examinadoras perante as quais prestavam exames os candidatos à carta de habilitação para o exercício da cirurgia, e, em sua ausência, as Câmaras Municipais nomeavam os integrantes dessas juntas. A atuação desses comissários, no entanto, foi bastante precária, pois um vasto território permanecia sob a jurisdição de poucos profissionais, o que levou, muitas vezes, as câmaras, corregedores e capitães-generais das capitanias a exercerem o controle da prática das artes cirúrgicas.

Um regimento geral dos delegados e juízes comissários do cirurgião-mor e físico-mor no Estado do Brasil foi promulgado em 16 de maio de 1744, intensificando a fiscalização do exercício das artes de curar na colônia. Com a extinção do cargo de cirurgião-mor, a Junta do Protomedicato passou a exercer suas atribuições por meio de seus delegados, que passaram a fiscalizar a prática médica dos cirurgiões, cirurgiões-barbeiros, barbeiros, sangradores, veterinários, enfermeiros, dentistas e parteiras, e o ensino médico-cirúrgico no Brasil, além da concessão de cartas de examinação, licenças de curadores e vistos em diplomas de faculdades médicas estrangeiras, e do controle de hospitais civis e militares. Com o restabelecimento dos cargos de cirurgião-mor e de físico-mor, após a vinda da família real para o Brasil em 1808, a Real Junta do Protomedicato não foi imediatamente extinta, ainda que, na prática, suas atribuições fossem delegadas aos cargos recém-criados. Foi só um ano depois, pelo alvará de 7 de janeiro de 1809, que se deu, oficialmente, seu fechamento.

Segundo o alvará de 23 de novembro de 1808, que regulamentou o exercício das atividades do cirurgião e do físico-mor, a jurisdição privativa de ambos os cargos se estenderia aos reinos de Portugal e Algarves, por meio de delegados comissários. Esses delegados ficavam responsáveis pelos assuntos de saúde e higiene, em conformidade com o regimento de 16 de maio de 1744, devendo ainda ser observados os regimentos de 25 de fevereiro de 1521 e de 12 de dezembro de 1631. No tocante à parte civil e a criminal, deveria ser executado o estabelecido dos parágrafos 7º a 11º do alvará de 1521. Os processos de competência do físico-mor e do cirurgião-mor seriam remetidos à Corte para julgamento, tornando-se nula a apelação ou o agravo para qualquer autoridade administrativa ou judicial.

Pela lei de 9 de setembro de 1826, as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia, criadas em 1808 por d. João, eram autorizadas a conceder cartas de cirurgião e cartas de cirurgião formado àqueles que concluíssem seus cursos, o que antes era competência do cirurgião-mor do Reino. Além disso, ficava assegurada a autonomia das academias na revalidação de diplomas estrangeiros, atribuição desempenhada, até então, por uma banca examinadora composta de dois de seus professores e presidida pelo cirurgião-mor.

Após essa perda de funções, em 1828, pela lei de 30 de agosto, foram abolidos, definitivamente, os lugares de físico-mor, cirurgião-mor e provedor-mor do Império, passando às câmaras municipais e às justiças ordinárias as atribuições que haviam recebido pelos regimentos de 23 de novembro de 1808, 28 de julho de 1809 e 22 de janeiro de 1810.


Dilma Cabral
Ago. 2011


Fontes e bibliografia

ABREU, E. A Fisicatura-Mor e o cirurgião-mor dos exércitos no reino de Portugal e estados do Brasil. Revista do IHGB, v. 63, n. 101, p. 154-306, 1900.

BRASIL. Alvará de 23 de novembro de 1808. Manda executar os regimentos do físico-mor e cirurgião-mor e regula a sua jurisdição e de seus delegados. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 163-164, 1891.

______. Alvará de 7 de janeiro de 1809. Abole a Junta do Protomedicato e devolve a sua jurisdição ao físico-mor e cirurgião-mor. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 13-14, 1891.

______. Lei de 9 de setembro de 1826. Manda passar cartas de cirurgião, e de cirurgião formado aos que concluírem os cursos das escolas de cirurgia do Rio de Janeiro e da Bahia. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, parte 1, v. 1, p. 8, 1826. Disponível em: https://goo.gl/2Vxx9x Acesso em: 30 ago. 2011.

______. Lei de 30 de agosto de 1828. Extingue os lugares de provedor-mor, físico-mor e cirurgião-mor do Império, passando para as câmaras municipais e justiças ordinárias as atribuições que lhe competiam. Coleção das leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, parte 1, p. 27-29, 1878.

EDLER, Flavio Coelho. Boticas e pharmacias: uma história ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa das Letras, 2006.

ESCOLA Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. In: DICIONÁRIO histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em: https://goo.gl/kcaUTt. Acesso em: 28 nov. 2002.

SANTOS FILHO, Licurgo dos. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1947.

SOARES, Márcio de Sousa. Médicos e mezinheiros na Corte imperial: uma herança colonial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 407-438, jul./ago. 2001.

 

Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_2O Fisicatura-Mor

BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo - Período Imperial

BR_RJANRIO_BF Série Saúde - Higiene e Saúde Pública - Instituto Oswaldo Cruz (IS4)

 

Referência da imagem

Jean Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d’un Artiste Français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement, epoques de l ‘avénement et de I ‘abdication de S.M. D. Pedro 1er. Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. Arquivo Nacional, OR_1909_V2_PL46