A Escola de Cirurgia da Bahia foi criada pela decisão n. 2, de 18 de fevereiro de 1808, poucos dias após a chegada de d. João à Bahia. A proposta foi do médico José Correia Picanço, cirurgião-mor do Reino, que ficava encarregado da escolha de seus professores. A escola ficaria acomodada no Hospital Real Militar da Bahia, que funcionava no antigo Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus. D. José de Saldanha da Gama, conde da Ponte, capitão-general da capitania da Bahia, foi autorizado por d. Fernando José de Portugal e Castro, marquês de Aguiar, ministro assistente ao despacho, a fazer os gastos necessários para sua imediata inauguração.
A Escola de Cirurgia da Bahia tinha por atribuição “a instrução dos que se destinam ao exercício desta arte” (Brasil, 1891a, p. 2), e sua criação pode ser vista como parte do processo de institucionalização da medicina no Brasil, iniciado com a vinda da família real e complementado pela criação da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Estes dois cursos de medicina e cirurgia foram as primeiras escolas de ensino superior do Brasil, visto que este tipo de instituição era até então proibido na colônia, e logo foram seguidos por outros estabelecimentos, como a Academia dos Guardas-Marinhas (1808), a Academia Real Militar (1810) e a Academia de Artilharia e Fortificações (1810).
Ao longo do período colonial, o cuidado com a saúde foi uma atribuição partilhada por diversos agentes de cura, como cirurgiões, físicos, sangradores, barbeiros, parteiras e seus aprendizes. A prática da medicina esteve também a cargo da assistência prestada nas enfermarias jesuíticas, nos hospitais da Misericórdia e nos hospitais militares, que, na maioria das vezes, constituíam a única fonte de assistência médica e fornecimento de medicamentos. A proibição do estabelecimento de universidades na colônia tornava mais difícil a formação de físicos e cirurgiões, o que explica a política de se enviarem estudantes para se formarem fora do país. A preparação desses curadores era diversa. No caso dos físicos, era necessário cursar uma universidade europeia, sendo o curso de Coimbra o mais procurado pelos oriundos da colônia portuguesa. Os cirurgiões formavam-se na prática, geralmente tornando-se ajudantes de um mestre-cirurgião habilitado ou ingressando em um hospital onde se fizesse ou ensinasse cirurgia, sendo necessário submeter-se a exames junto às autoridades sanitárias para obter licença para a prática do ofício.
No século XVII, registram-se algumas tentativas, por parte dos jesuítas e das autoridades locais, de transformar o Colégio da Bahia em universidade, o que, apesar de ter sido negado pela Coroa portuguesa, fez dos hospitais da Companhia de Jesus um importante espaço de estudo das artes de cura, comparável à Universidade de Évora, em Portugal. Com a expulsão dos jesuítas, em 1759, os hospitais militares e os da Misericórdia se tornaram igualmente centros de ensino de cirurgia, onde destacadas figuras do período colonial receberam as primeiras noções desta arte, como José Soares de Castro, Manuel José Estrela e o próprio José Correia Picanço. Dessa forma, nada mais adequado para a instalação das primeiras escolas de ensino médico e cirúrgico no Brasil do que os hospitais militares da Bahia e do Rio de Janeiro.
Há poucos atos legais regulamentando a Escola de Cirurgia da Bahia, especialmente entre 1808 e 1815. Em 1808, foram nomeados o cirurgião Manoel José Estrela para a cadeira de cirurgia especulativa e prática, e o cirurgião José Soares de Castro para a disciplina de anatomia e operações cirúrgicas. Segundo as instruções recebidas por Manoel José Estrela, transmitidas pelo cirurgião-mor do Reino, José Correia Picanço, os alunos da Escola de Cirurgia deviam ter conhecimento da língua francesa, e o curso teria duração de quatro anos. Quando concluído, seriam passadas as certidões competentes, declarando o aluno apto a fazer o exame. Inicialmente, os cirurgiões dependiam, para exercer o ofício, de aprovação e licença concedidas pelo cirurgião-mor do Reino, sendo que esta condição durou apenas até 1826. A parte teórica das aulas era ministrada em uma sala do Hospital Militar, e a prática, em uma de suas enfermarias, que seria franqueada ao professor de cirurgia duas vezes por semana. No entanto, segundo as instruções de Picanço, nas lições práticas não caberia fazer “reflexões à cabeceira dos doentes, mas sim na sua respectiva aula, pois que o curativo pertence ao cirurgião-mor do hospital, que só para isso tem atividade” (apud Britto, 2003, s. p.). Esta preocupação em dirimir qualquer conflito de jurisdição entre o cirurgião da escola e o do Hospital Militar também ficou expressa na carta régia de 22 de dezembro de 1809, que estabeleceu uma Escola de Medicina e Cirurgia naquele hospital, destinada à instrução dos cirurgiões ajudantes dos regimentos. Ficava o cirurgião-mor João Pereira de Miranda, agregado ao 1º Regimento de Infantaria de Linha do Salvador, encarregado da “instrução facultativa teórica e prática” dos ajudantes, sem direito ao acréscimo no soldo, com a promessa de futura sucessão ao cargo de cirurgião-mor no Hospital Militar (Brasil, 1891b, p. 150).
A carta régia de 29 de dezembro de 1815 colocou em execução na Escola da Bahia o plano de estudos de cirurgia, aprovado em 1813, para a Escola Anatômico-Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Elaborado por Manoel Luiz Álvares de Carvalho, diretor da Escola Anatômico-Cirúrgica, o plano promoveu a primeira reforma do ensino cirúrgico do Rio de Janeiro, aumentando a sua duração para cinco anos e transferindo suas aulas do Hospital Militar para a Santa Casa de Misericórdia, na praia de Santa Luzia, além de prever o estabelecimento de uma academia médico-cirúrgica no Maranhão.
Da mesma forma, a carta régia que implementava o plano dos estudos de cirurgia na Bahia reconhecia serem limitados “os princípios que se adquirem pelas lições das matérias próprias das duas cadeiras estabelecidas”, dispondo que estava criado um curso completo de cirurgia (Brasil, 1890, p. 62). Ampliadas as suas funções, a Escola de Cirurgia começou a funcionar em 17 de março de 1816, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia. O curso estruturava-se da seguinte forma:
1º ano: anatomia geral, química, farmacêutica, matéria médica e cirúrgica, e suas aplicações;
2º ano: anatomia e fisiologia;
3º ano: higiene, etiologia, patologia e terapêutica;
4º ano: instruções cirúrgicas e operações, e lições e práticas de obstetrícia;
5ºano: prática de medicina, lições do quarto ano e obstetrícia.
Os estudantes que soubessem latim ou geometria poderiam matricular-se no segundo ano do curso. Após a conclusão, os alunos aprovados poderiam obter a Carta de Cirurgia, e os que quisessem frequentar novamente o quarto e o quinto ano, e prestassem todos os exames com distinção, receberiam a graduação de formados em cirurgia. Com isso, poderiam obter preferência em nomeações e empregos, além de estarem habilitados a curar todas as enfermidades nos locais onde não houvesse médicos e serem membros do Colégio Cirúrgico, podendo também candidatar-se às cadeiras dos cursos cirúrgicos onde fossem estabelecidos.
Subordinava-se a Escola de Cirurgia da Bahia ao governador e capitão-general da capitania, sendo expedidas as matérias de seu interesse pela Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil. Segundo o decreto de 1º de abril de 1813, Manuel Luís de Carvalho era o diretor de Estudos de Medicina e Cirurgia na Corte e Estado do Brasil. No entanto, não ficaram claras as atribuições deste cargo, que, na prática, parecia restringir-se à direção da Escola Anatômico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Na Escola de Cirurgia da Bahia, o primeiro diretor oficial, José Lino Coutinho, foi empossado apenas em 23 de julho de 1833. Antes disso, José Avelino Barbosa desempenhou informalmente esta função, após ter sido eleito pela congregação de professores em 16 de dezembro de 1829.
Até 1816, a Escola de Cirurgia da Bahia continuava com seus dois professores designados em 1808, José Soares de Castro, lente do primeiro ano, e Manuel José Estrela, do segundo. A implementação do plano de estudos de cirurgia ampliou seus quadros, sendo nomeado Antônio Ferreira França para o terceiro ano e José Maria Álvares do Amaral, secretário e professor substituto do primeiro, para o segundo e quarto ano, encarregado, ainda, de dar lições de patologia e terapêutica cirúrgica no terceiro ano, permanecendo vagas as cadeiras do quarto e do quinto ano.
Somente em 1818, foi nomeado o professor Manuel Silveira Rodrigues para o quarto ano, mas ele não chegou a lecionar na Bahia, sendo transferido, em 1823, para o Rio de Janeiro. Não parece haver consenso na bibliografia sobre a data precisa da nomeação do professor do quinto ano, José Avelino Barbosa.
Com o passar do tempo, a formação dos cirurgiões demandou novas alterações na estrutura do curso, como a criação da cadeira de química, regulamentada pela carta régia de 28 de janeiro de 1817, sendo nomeado como lente Sebastião Navarro de Andrade. Em 1819, pela carta régia de 29 de novembro, foi estabelecida a cadeira de farmácia, para a qual se designou o médico português Manuel Joaquim Henriques de Paiva. Estas cadeiras nem sempre eram obrigatórias para os alunos da escola, variando bastante a frequência dos estudantes de cirurgia. Como exemplo, temos a cadeira de farmácia, que apenas em 1824 seria incorporada à Academia Médico-Cirúrgica da Bahia, na qual ficava anexada a matéria médica e terapêutica.
Apesar de a bibliografia consultada indicar o ano de 1815 como de mudança na denominação da Escola de Cirurgia da Bahia para Academia Médico-Cirúrgica da Bahia, não há qualquer referência, na carta régia de 29 de dezembro de 1815, sobre esta questão. No período de 1815 a 1832, encontramos na legislação tanto a denominação de escola de cirurgia como a de academia médico-cirúrgica, apesar de a segunda ser mais frequente.
Somente em 1826, pela lei de 9 de setembro, as academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahia foram autorizadas a conceder as cartas de cirurgião e de cirurgião formado aos que concluíssem seus cursos, o que até então era competência do cirurgião-mor do Reino. Além disso, ficava assegurada a autonomia das academias na revalidação de diplomas estrangeiros, atribuição que antes era desempenhada por uma banca examinadora composta de dois de seus professores e presidida pelo cirurgião-mor.
Dilma Cabral
Ago. 2011
Fontes e bibliografia
BRASIL. Decisão n. 2, de 18 de fevereiro de 1808. Manda criar uma Escola de Cirurgia no Hospital Real da cidade da Bahia. Coleção das decisões do governo do Brasil, Rio de Janeiro, p. 2, 1891a.
______. Carta régia de 22 de setembro de 1809. Estabelece uma Escola de Medicina e Cirurgia no Hospital Militar da Bahia, para instrução dos cirurgiões ajudantes do regimento. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 150, 1891b.
______. Carta de lei de 16 de dezembro de 1815. Eleva o Estado do Brasil à graduação e categoria de Reino. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p. 62-63, 1890.
BRITTO, Antônio Carlos Nogueira. 195 anos de ensino médico na Bahia. Disponível em: https://bit.ly/2Xq2QCh. Acesso em: 21 out. 2008. Conferência proferida em 18 de fevereiro de 2003, no Anfiteatro Alfredo Britto, Faculdade de Medicina da Bahia.
______. Memória histórica do Colégio Médico-Cirúrgico da cidade da Bahia, 1816. Disponível em: https://goo.gl/cdSJ3y. Acesso em: 21 out. 2008.
ESCOLA de Cirurgia da Bahia. In: DICIONÁRIO histórico-biográfico das ciências da saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em: https://goo.gl/6pzVo6. Acesso em: 28 nov. 2002.
RIBEIRO, Lourival. Medicina no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1971.
SANTOS FILHO, Lycurgo dos. História da medicina no Brasil: do século XVI ao século XIX. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1947.
Documentos sobre este o órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_1R Conselho de Estado
BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo – Período Imperial
BR_RJANRIO_2H Diversos - SDH - Caixas
BR_RJANRIO_53 Ministério do Império
BR_RJANRIO_95 Série Educação - Ensino Superior (IE3)
BR_RJANRIO_AF Série Justiça - Administração (IJ2)
Referência da imagem
Charles Ribeyrolles. Brasil pitoresco: história, descrições, viagens, instituições, colonização. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1859-1861. Arquivo Nacional, OR_2055
Este verbete refere-se apenas à trajetória do órgão no período ou colonial. Para informações entre 1822 e 1889, consulte Academias Médico-Cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro