Na Corte, os escravos condenados a galés, ou trabalhos públicos forçados, eram utilizados, entre outros serviços, no transporte de água e alimentos para os demais prisioneiros.
Na Corte, os escravos condenados a galés, ou trabalhos públicos forçados, eram utilizados, entre outros serviços, no transporte de água e alimentos para os demais prisioneiros.

O Código Criminal do Império do Brasil foi sancionado pela lei de 16 de dezembro de 1830, substituindo o livro V das Ordenações Filipinas (1603), codificação penal portuguesa que continuou em vigor depois da Independência (1822), seguindo determinação da Assembleia Nacional Constituinte de 1823.

A Constituição do Império do Brasil, de 1824, determinou que “organizar-se-á o quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e equidade” (BRASIL. Constituição (1824), art. 179, parágrafo 18). No entanto, se a monarquia brasileira não conseguiu elaborar seu Código Civil, que foi sancionado apenas no período republicano, em 1916, o mesmo não ocorreu com a codificação penal (LARA, 1999, p. 38-9).

Em 1829, a comissão mista do Senado e da Câmara encarregada de examinar os dois projetos de código criminal apresentados em 1827 pelos deputados José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vasconcelos, recomendou o deste último, justificando a adoção de uma obra não perfeita, mas necessária e útil se comparada à legislação em vigor. No parecer da comissão, o livro V das Ordenações Filipinas foi descrito como uma legislação incompleta e bárbara, um conjunto de leis desconexas influenciadas pela superstição e grosseiros juízos draconianos (Sessão de 31 de agosto de 1829 apud MALERBA, 1994, p. 145).

O Código Criminal possuía quatro partes – dos crimes e das penas; dos crimes públicos, dos crimes particulares e dos crimes policiais – sendo composta cada uma por títulos, capítulos e seções. O documento determinava que nenhum crime fosse punido com penas que não estivessem estabelecidas nas leis conforme a gradação de máximo, médio e mínimo, em razão das possíveis atenuantes ou agravantes (Código Criminal, art. 33). Foram definidos como criminosos (autores) aqueles que cometiam, constrangiam ou mandavam alguém cometer crimes. Não haveria crime ou delito, palavras sinônimas neste código, sem uma lei anterior que o qualificasse (Código Criminal, art. 1º). Os menores de quatorze anos foram isentos de responsabilidade penal (Código Criminal, art. 10), mas se ficasse provado que haviam cometido crime ou delito, agindo com discernimento, seriam encerrados nas casas de correção, sendo que o período de reclusão não poderia ser estendido após o réu completar dezessete anos (Código Criminal, art. 13).

A legislação criminal adotada no Império significou uma ruptura em relação às penalidades supliciantes da codificação portuguesa (esquartejamento, amputação, açoites etc.), por privilegiar a aplicação da pena de privação da liberdade (o encarceramento) praticamente inexistente no livro V, mas que foi aplicada predominantemente no Código de 1830 (MORAES, 1923, p. 15), (SALLA, 2006, p. 46). As punições do Antigo Regime eram exemplares e recaíam sobre o corpo do condenado. Nos casos da aplicação da pena de morte podia ocorrer uma combinação de suplícios (açoites e tenazes quentes), além do esquartejamento antes ou depois da morte, de acordo com a condição do criminoso e o tipo de crime (LARA, 1999, p. 22).

A aplicação generalizada da pena de prisão, a partir do século XIX, foi fruto do ideário iluminista, dado o caráter igualitário da penalidade de confiscar um direito comum, a liberdade, de todos os que haviam sido elevados à categoria de cidadãos (SALLA, 2006, p. 46). Sua aplicação é prevista nos quatro títulos da parte segunda do Código de 1830, que tratou dos crimes públicos contra a existência política do Império, o exercício dos poderes políticos, o livre gozo dos direitos políticos dos cidadãos e a segurança interna (MALERBA, 1994, p. 119). Nesses casos, a pena de prisão simples impunha aos réus “a reclusão nas prisões públicas pelo tempo marcado nas sentenças” (art. 47), mas podia ser acrescida da obrigação do trabalho, quando os condenados eram obrigados a se ocuparem diariamente do “que lhes for destinado dentro do recinto das prisões na conformidade das sentenças e dos regulamentos policiais das mesmas prisões” (art. 46).

No entanto, o texto do Código de 1830 não indicou a forma como o trabalho prisional devia ser organizado. Essa tarefa ficou a cargo das assembleias legislativas provinciais que deveriam construir, conforme o artigo 10 do Ato Adicional de 1834, as instituições destinadas para esse fim, isto é, as “casas de prisão, trabalho e correção”, bem como legislar sobre seu regime. No município neutro, a capital do Império, a partir de 1850 passou a existir a Casa de Correção, diretamente subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça.

Enquanto a pena de prisão com trabalho não pudesse ser cumprida, o próprio texto do código prescreveu sua comutação pela de prisão simples. Nos casos em que esse recurso foi aplicado, o período da pena de prisão devia ser acrescido do tempo correspondente à sexta parte do estipulado para o cumprimento da pena de prisão com trabalho (art. 49). Para o cumprimento dessas penalidades, as prisões do Império deveriam ser “seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme as circunstâncias e natureza dos seus crimes” (Constituição do Império do Brasil (1824) art. 179, parágrafo 21)

Seguindo uma filosofia jurídica liberal que não estava consolidada nem nos países europeus (CAULFIELD apud GRINBERG, 2008, p. 147), o Código de 1830 adotou o conceito de culpabilidade, que passava a ser centrado no ato criminoso e não na pessoa do infrator (justiça retributiva), com a punição proporcional ao delito cometido. Esse princípio foi o tema central da obra Dos delitos e das penas (1764) de Cesare Beccaria, considerado um dos precursores da escola clássica de direito penal, em oposição às práticas punitivas do Antigo Regime, como as penas cruéis e de morte, e a utilização da tortura nas investigações (PAIXÃO, 1991, p. 17). Nesse sentido, o Código Criminal brasileiro exerceu grande influência na elaboração do código espanhol (1848) e dos países latino-americanos (PEIRANGELLI, 1980, p. 8).

De acordo com a orientação do direito clássico, a Constituição de 1824 aboliu “os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (BRASIL. Constituição (1824), art. 179, parágrafo 19). O Código de 1830 também eliminou as mutilações e os castigos corporais, mas manteve as penas de açoites, aplicada exclusivamente aos escravos, as de morte e de galés. O artigo 60 estipulou que “se o réu for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro, pelo tempo, e maneira que o Juiz designar” (MORAES, 1923, p. 4). Na sentença vinha fixado o número de açoites a serem aplicados não podendo exceder a cinquenta por dia. Segundo a historiografia, a permanência destas penalidades de caráter supliciante legitimou a violência privada dos senhores de escravos, gerando questionamentos quanto ao caráter pretensamente liberal do Código de 1830 (MALERBA, 1994, p. 9-11). Esse artigo, no entanto, foi revogado pela lei n. 3.310 de 15 de outubro de 1886.

A discussão no parlamento em torno da inclusão no Código das penas de morte e de galés gerou intensos debates no último ano da primeira legislatura (1826-1829). O parecer da comissão mista do Senado e da Câmara desejou suprimir a pena de morte devido à inutilidade de sua aplicação, mas ressaltou que no estágio em que se encontrava a população do Brasil, cuja educação primária não era generalizada, sua manutenção era uma triste necessidade. A comissão confiava, portanto, na intervenção do Poder Moderador, para comutar a pena capital quando conviesse (sessão de 31 de agosto de 1829 Apud MALERBA, 1994, p. 145).

No projeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos, apresentado na sessão de 4 de maio de 1827, a pena de morte e a de galés já tinham sido previstas. Durante a apreciação de projeto na Câmara, o deputado justificou a manutenção de ambas as penalidades devido à inexistência de instituições correcionais no Brasil (BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados, 14 de setembro de 1830, p. 507).

Apesar de alguns parlamentares se posicionarem contra a adoção da pena capital, e também contra a de galés, a emenda que defendia sua inclusão no Código de 1830 foi aprovada. O deputado Rego Barros, autor da emenda, justificou sua adoção nos casos de homicídio e no de insurreições de escravos, pois essa seria a única punição que poderia conter a escravatura (BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 15 de setembro de 1830, p. 511-2). A pena de morte se daria por meio da forca (art. 38), sendo aplicada também aos homens livres quando fossem líderes em crimes de insurreição, aos homicidas (art. 192) e suas circunstâncias agravantes (art. 16), e no roubo com morte (art. 271). A pena de galés sujeitava os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província onde tivesse sido cometido o delito, ficando à disposição do governo (art. 44).

O primeiro código brasileiro foi discutido e aprovado durante o conturbado período do Primeiro Reinado (1822-1831), onde ocorreram confrontos entre os que eram favoráveis à independência do país, com a manutenção da unidade territorial em torno do governo do Rio de Janeiro, e as províncias que permaneceram fiéis às Cortes de Lisboa, como Bahia, Grão-Pará, Piauí e Cisplatina, onde ocorreram as chamadas guerras de independência (1822-1824).

A dissolução da Assembleia Constituinte pelo imperador em 1823 e a outorga da Constituição de 1824, que instituiu um Executivo forte e centralizado, levavam em si a ideia de que a construção do novo país incluía a manutenção da unidade territorial do império com o governo centralizado no Rio de Janeiro, o seu reconhecimento em nível internacional e a definição de suas fronteiras, especialmente no extremo onde ocorria a Guerra Cisplatina (1825-1828). No entanto, em diversas províncias tais medidas foram seguidas por manifestações e revoltas, de cunho federativo e republicano, geradas pela insatisfação com o papel preponderante que a Corte ganhava no cenário político nacional, em detrimentos dos poderes locais.

Diante desse cenário, os delitos de origem política previstos no Código Criminal receberam uma atenção especial dos legisladores, que trataram da matéria no título IV “Dos crimes contra a segurança interna do Império, e pública tranquilidade”. Os capítulos desse título abordavam os crimes de conspiração, rebelião, sedição, insurreição e resistência. Nos casos de insurreição de escravos “para haverem a liberdade por meio da força” foi prevista no grau máximo a pena de morte para os líderes, “de galés perpétuas no médio, e por quinze anos no mínimo e aos mais açoites” (art. 113). Se os líderes da insurreição fossem pessoas livres incorreriam nas mesmas penas (art. 114). A pena de desterro para fora do Império foi prevista nos delitos de conspiração e, para os crimes de rebelião, a punição dirigida no grau máximo aos líderes foi a pena de prisão perpétua com trabalho.

No que se refere ainda aos crimes políticos, o código definiu que quem tentasse diretamente, e por fatos, destruir a independência ou a integridade do Império (art. 68) seria punido com prisão com trabalho de cinco a quinze anos, e se o crime se consumasse a pena seria de prisão perpétua com trabalho no grau máximo. No século XIX, alguns autores avaliaram que esse dispositivo encerrava um paradoxo, pois indivíduos que perpetravam um crime contra a ordem vigente, sendo vitoriosos, não aplicariam em si mesmos a punição prevista (MALERBA, 1994, p. 72).

Além das penas de prisão simples e com trabalho, açoites, morte e galés, o Código de 1830 previu também as seguintes penalidades: banimento, degredo, desterro, multa, suspensão e perda de emprego.

A pena de banimento (art. 50) privava os réus dos direitos de cidadão brasileiro e de habitar perpetuamente o território do Império. No entanto, apesar de previsto o banimento não foi estipulado diretamente como pena para nenhum crime (SALLA, 2006, p. 367).

A pena de degredo (art. 51) obrigava “os réus a residir no lugar destinado pela sentença, sem poderem sair dele, durante o tempo, que a mesma lhes marcar” (MORAES, 1923, p. 4). Sua aplicação deveria ser feita nos casos de estupro (art. 221) e no exercício ilegítimo da autoridade militar (art. 141), o que representou uma diminuição significativa se comparado ao número de crimes – em torno de duzentos e cinquenta e seis – punidos com o degredo nas Ordenações filipinas (PONTAROLO, 2010). Pode-se dizer que a pena de degredo praticada durante o período imperial possuiu também uma função ligada ao povoamento nas regiões de fronteira (PIERONI, 2002; PONTAROLO, 2010, p. 17). A partir da segunda metade do século XIX, o decreto n. 2.375 de 5 de março de 1859 incluiu os degredados no rol daqueles que poderiam ser enviados para o Presídio de Fernando de Noronha.

Já a pena de desterro obrigaria “os réus a sair dos termos dos locais do delito, da sua principal residência, e da principal residência do ofendido, e a não entrar em algum deles durante o período marcado na sentença” (art. 52). Essa pena era prevista nos casos de estupro (art. 219) e de conspiração (art. 107).

A pena de multa obrigava os réus ao pagamento de uma quantia pecuniária, imposta de maneira aditiva às penas principais de prisão simples e com trabalho, e de suspensão e perda de empregos.

A pena de suspensão do emprego privava “os réus do exercício dos seus empregos [...] durante o tempo da suspensão”, estabelecendo que eles “não poderiam ser empregados em outros salvo sendo de eleição popular” (art. 58). A perda de emprego importava na “perda de todos os serviços, que os réus houverem prestado nele” (art. 59). Essas duas penalidades foram executadas nos casos de réus funcionários públicos (SALLA, 2006, p. 367).

O Código Criminal de 1830 vigorou durante todo o Império e foi complementado posteriormente pelo Código do Processo Penal de 1832, tendo sido substituído apenas na República, em 1890.



Gláucia Tomaz de Aquino Pessoa
9 maio 2014


Bibliografia
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 14 de setembro de 1830. Disponível em: <https://goo.gl/bw3qHj>.  Acesso em: 13 dez. 2013.

____. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 15 de setembro de 1830. Disponível em: <https://goo.gl/bw3qHj>.  Acesso em: 16 dez. 2013.

____. Lei n. 3.310 de 15 de outubro de 1886. Revoga o art. 60 do Código Criminal e a lei n. 4 de 10 de junho de 1835, na parte em que impõem a pena de açoites.  Disponível em: <https://goo.gl/NPbEqo > Acesso em:  09 maio 2014.

LARA, S. (org.). Ordenações Filipinas, Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

LACOMBE, Américo Jacobina A cultura jurídica. In: HOLANDA, Sérgio B. de. HGCB. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, v. 3, tomo II, p. 356-368.

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MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Brasil Império do Brasil. Maringá: EDUEM, 1994.

PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil-colônia. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil: Fundação Biblioteca Nacional, 2000.

PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo: Jalovi, 1980.

PONTAROLO, Fabio. Homens de ínfima plebe: os condenados ao degredo interno no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2010.

SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. 2ª edição. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2006.

GRINBERG, Keila. Código Criminal. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.


Referência da imagem

Sir Henry Chamberlain. Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1818-1820. Rio de Janeiro: Kosmos, 1943. OR_1985