Na década de 1920, foi aprovado um conjunto de leis que se tornaram marcos das ações de intervenção do Estado em relação à infância e adolescência, naquele momento congregadas na categoria de menores. Em 1927, a consolidação dessa legislação foi aprovada pelo decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro, que ficou conhecido como Código de Menores ou Código Melo Matos.
Os últimos anos do século XIX foram atravessados por grandes transformações políticas, econômicas e sociais, advindas, especialmente, após a abolição do trabalho escravo e a Proclamação de República. Nessa nova conjuntura, registraram-se um aumento do fluxo imigratório, o incremento da industrialização e um acentuado processo de urbanização, que demandaram a constituição de novos mecanismos de controle social, voltados, sobretudo, para a população mais pobre, considerada, muitas vezes, como ‘potencialmente perigosa’.
No que se refere à proteção da infância e adolescência desamparada, verificou-se uma mudança de diretrizes em relação ao período imperial. Assim, se, naquele momento, a atuação do Estado estava assentada na necessidade de ilustração do povo, por meio da formação da força de trabalho, da colonização e da contenção das massas desvalidas, na República, ela se concentrou na identificação e no estudo dos que careciam de proteção, propiciando um aparelhamento institucional dirigido para a ‘salvação’ da infância brasileira (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 28-29).
A questão foi transformada, portanto, em um ‘problema’, que impôs ao Estado a “urgência em intervir, educando ou corrigindo” as crianças pobres para que se tornassem cidadãos úteis e produtivos para o país (Rizzini, 1995, p. 110). Na base desta reorientação figuraram debates envolvendo diversos campos profissionais, como direito e medicina, que impulsionaram um grande movimento em favor da infância abandonada e delinquente e da construção de um projeto para sua institucionalização (Alvarez, 1989, p. 51-52). No interior dessas discussões, destaca-se a presença dos novos ideais de defesa social, sob inspiração da escola positiva ou positivista, que alterou o objeto da ação penal do crime para o criminoso, reforçando a necessidade de medidas preventivas e terapêuticas, que acabou por transformar a infância em objeto privilegiado de aplicação de seus preceitos (Alvarez, 1996, p. 219).
Para tanto, via-se como necessária a implementação de uma variedade de dispositivos destinados à propagação de hábitos de higiene e prevenção de doenças, de repressão da criminalidade e de alteração nas relações de trabalho (Vianna, 1999, p. 42). Nesse processo, o termo jurídico ‘menores’ foi convertido em uma nova categoria social, que passou a designar a criança e o adolescente objetos da justiça e da assistência, alvo das políticas de internação (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 68).
Iniciativas voltadas para a assistência e proteção a crianças e adolescentes no Brasil remontam ao período colonial e estiveram confiadas a instituições religiosas católicas, que se encarregaram da educação de órfãos e abandonados. No século XVIII, surgiram as rodas dos expostos, mantidas pelas santas casas de misericórdia, que recebiam bebês, preservando o anonimato de seus genitores (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 23). Em termos administrativos, vale assinalar o estabelecimento, em 1731, do cargo de juiz dos órfãos na estrutura das câmaras municipais, responsável pelo cuidado dos órfãos, seus bens e rendas (Salgado, 1985, p. 262).
No período imperial, verificou-se a continuidade de empreendimentos privados de cunho religioso e caritativo, ao lado de uma preocupação com a formação educacional de crianças e adolescentes órfãos ou abandonados (Rizzini, 1995, p. 105). O regimento das câmaras municipais, aprovado pela lei de 1º de outubro de 1828, previu a aplicação de recursos para a criação dos expostos, incluindo sua educação, e dos órfãos pobres e desamparados nas cidades onde não houvesse santas casas de misericórdia. Em 1834, o Ato Adicional, que promoveu alterações na Constituição de 1824, determinou que a instrução primária ficasse na esfera da administração provincial, o que impulsionou o surgimento de instituições como as casas de educandos artífices, onde as crianças e adolescentes pobres recebiam instrução primária e profissional (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 25).
Em 1830, o Código Criminal fixou a responsabilidade criminal a partir de 14 anos e prescreveu que crianças com idade inferior poderiam ser culpabilizadas, desde que tivessem agido com “discernimento”, devendo ser recolhidas às casas de correção (Código..., 2014). Em 1861, o decreto n. 2.745, de 13 de fevereiro, criou o Instituto de Menores Artesãos da Casa de Correção da Corte, com a finalidade de prover a educação moral e religiosa dos menores presos pela polícia por serem “vadios, vagabundos ou abandonados”, dos menores encaminhados pelos pais e tutores, e dos órfãos que não pudessem receber uma educação conveniente em outro lugar (Instituto..., 2014).
No contexto de discussão sobre a reorganização das relações de trabalho após a emancipação dos filhos de mulheres escravizadas, decretado pela chamada Lei do Ventre Livre, e da necessidade de controle sobre esse contingente populacional, foram fundadas instituições como o Asilo dos Meninos Desvalidos, de 1874, voltado para o recolhimento de menores de 12 anos pobres que fossem encontrados vagando ou mendigando nos distritos (Asilo..., 2015). Data ainda do período imperial a constituição das companhias de aprendizes-marinheiros e de aprendizes dos arsenais de Guerra, que recebiam meninos retirados das ruas pelas polícias nas capitais brasileiras (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 25).
Além da manutenção de órgãos públicos, o governo imperial se ocupou do amparo financeiro às instituições de caridade, que ficou sob a esfera da Secretaria de Estado dos Negócios do Império. De acordo com um dos primeiros atos de organização da pasta, o regulamento aprovado pelo decreto n. 273, de 25 de fevereiro de 1843, a secretaria possuía uma seção específica que, dentre outras atribuições, era responsável pelo estabelecimento e conservação de hospitais, casas de expostos, recolhimento de órfãs no município da corte, bem como pelo conhecimento do estado de instituições congêneres nas províncias do Império (Sá Netto, 2013, p. 140). Esta seção foi extinta durante a reorganização ministerial ocorrida em 1859. No entanto, a função relativa ao amparo financeiro de estabelecimentos de caridade foi preservada no âmbito da pasta até sua extinção, pela lei n. 23, de 30 de outubro de 1891, sendo transferida para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores durante a República.
Uma das primeiras ações tomadas pelo governo republicano relacionadas à infância e adolescência foi a aprovação do decreto n. 439, de 31 de maio de 1890, que fixou as bases para a assistência à infância desvalida. Foram definidas como desvalidas as crianças abandonadas na via pública e recolhidas em estabelecimentos mediante requisição do chefe de polícia ou juiz de órfãos e não reclamadas pelos pais ou responsáveis após anúncio feito em jornais de grande circulação; órfãos de pai e mãe, quando comprovada sua indigência; órfãos de pai sob a mesma condição; e aqueles cujas famílias não dispusessem de meios para sua manutenção. O ato também determinou que essa assistência seria realizada por intermédio da Casa de São José, que receberia menores de seis a 12 anos, e do Asilo dos Meninos Desvalidos, que abrigaria aqueles com idade entre 12 e 14 anos, ficando essas instituições sob a inspeção de um superintendente subordinado ao ministro do Interior (Brasil, 1890a).
Ainda em 1890, o Código Penal, aprovado pelo decreto n. 847, de 11 de outubro, reduziu a idade de responsabilidade criminal para nove anos, desde que fosse comprovado que o menor tivesse agido com “discernimento”, dispondo sobre seu recolhimento em estabelecimentos disciplinares industriais até, no máximo, 17 anos de idade (Brasil, 1890b).
O recolhimento de menores era uma atribuição da polícia, que exerceu um papel de destaque nesse contexto de emergência de um novo cotidiano urbano (Vianna, 1999, p. 45-46). Seu papel ultrapassava, desse modo, o da repressão ao crime, compreendendo uma extensa ação de manutenção da ordem da cidade, incluindo a retirada das ruas de uma população diversificada, enquadrada nas categorias de menores, alienados, mendigos, vadios, entre outras (Vianna, 1999, p. 54).
Em 1899, o então chefe de polícia do Distrito Federal, João Brasil Silvado, fundou a Escola Quinze de Novembro, que deveria funcionar como um espaço de prevenção, como se coubesse à instituição “sustar e modificar um perigo pressentido” (Vianna, 1999, p. 63). A escola foi reformulada pelo decreto n. 4.780, de 2 de março de 1903, destinando-se a oferecer educação física, profissional e moral aos menores abandonados, de nove a 14 anos, retirados das ruas por ordem das autoridades competentes (Escola..., 2018).
Em 1907, novamente por iniciativa de um chefe de polícia, cargo ocupado naquele momento por Alfredo Pinto Vieira de Melo, foi instituída a Escola de Menores Abandonados, cuja supervisão estava vinculada à Casa de Detenção. Apesar de adotar um modelo escolar semelhante ao da Escola Quinze de Novembro, a Escola de Menores Abandonados não utilizou a internação como meio de ‘regeneração’ dos menores, mas voltou-se para afastá-los da vida nas ruas (Vianna, 1999, p. 74-75).
Com um perfil um pouco distinto, foram fundados, pelo decreto n. 12.893, de 28 de fevereiro de 1918, os patronatos agrícolas. Subordinados ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, os patronatos tinham a finalidade de oferecer a instrução primária e cívica, e noções práticas de agricultura, zootecnia e veterinária, aos menores desvalidos, respondendo a um duplo objetivo: qualificar a mão de obra para o trabalho agrícola e contribuir para contornar parte dos problemas dos grandes centros urbanos (Patronatos..., 2021).
Ao lado da criação de órgãos públicos e dos continuados esforços privados de caráter filantrópico, nesse período foram elaborados diferentes projetos legislativos orientados para o tratamento do ‘problema’ dos menores em diferentes dimensões. O primeiro foi apresentado em 1902, pelo senador José Lopes da Silva Trovão, sem desdobramentos. Quatro anos depois, o deputado Alcindo Guanabara levou à Câmara um novo projeto que tinha como objetivo estabelecer normas para a proteção e assistência aos menores, incluindo dispositivos relativos ao controle daqueles em reconhecida situação de abandono ou maus tratos; à suspensão, perda ou destituição do pátrio poder; à execução de medidas de prevenção e tratamento, entre outros pontos. Como a de Lopes Trovão, esta proposta não foi concretizada, bem como um outro projeto, de autoria do deputado João Chaves, apresentado em 1912 (Rizzini, 1995, p. 121-123).
Apenas na década de 1920, foi aprovada uma série de atos legais voltados para a assistência e proteção da infância e adolescência, que ampliou a intervenção do Estado, processo que também se deu em outros campos, como na saúde e na educação, e em diálogo com os principais debates sobre a temática realizados dentro e fora do país. Nessa direção, cabe destacar a realização, em 1922, do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, idealizado pelo médico Carlos Arthur Moncorvo Filho, que teve por fim a organização da assistência à infância, especialmente no que se referia à questão da saúde, evidenciando uma preocupação com os altos índices de mortalidade observados na época (Zanélla, 2014, p. 44).
Durante a presidência de Epitácio Pessoa (1919-1922), Alfredo Pinto, então ministro da Justiça e Negócios Interiores, encarregou o advogado e ex-deputado federal José Cândido de Albuquerque Melo Matos da elaboração de um substitutivo do projeto apresentado por Alcindo Guanabara em 1906. O texto foi submetido a uma comissão formada por nomes como Moncorvo Filho, Mario Franco Vaz, diretor da então denominada Escola Premonitória Quinze de Novembro, Evaristo de Morais, entre outros (Pinheiro, 2014, p. 52). Foi aprovado com emendas e inserido, em parte, na lei orçamentária de 1921, n. 4.242, de 5 de janeiro, que autorizou o governo a organizar o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente, a partir da construção de um abrigo para o recolhimento provisório e de dois pavilhões anexos à Escola Premonitória Quinze de Novembro; a fundação de uma casa de preservação para meninas e a nomeação de um juiz privativo para os menores (Brasil, 1921).
Além da organização de instituições, a lei contemplou vários aspectos relacionados ao tema, assumindo, de acordo com alguns autores, um caráter “paternalista-moralista”, em relação à população mais pobre (Cámara, 2015, p. 123). Foram definidos como menores abandonados todos aqueles que não tivessem habitação certa, nem meios de subsistência, por ausência, enfermidade ou morte dos pais, tutores ou pessoas incumbidas da sua guarda; aqueles cujos responsáveis fossem reconhecidos como incapazes ou impossibilitados de cumprirem seus deveres ou praticantes de atos contrários à moral e aos bons costumes; os encontrados em estado de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; os que fossem vítimas de maus tratos físicos, privados de alimentos, empregados em ocupações proibidas ou expostos a situações inapropriadas; e aqueles cujos responsáveis tivessem sido condenados a mais de dois anos de prisão por algum crime (Brasil, 1921).
Em casos provados de negligência, abuso de poder, crueldade, especulação e crime do responsável, a autoridade competente poderia decretar a suspensão ou perda do pátrio poder e a destituição de tutela, ampliando os dispositivos a respeito existentes no Código Civil. Esta autoridade ficava, ainda, encarregada da apreensão dos menores, de seu depósito em lugar conveniente e de sua guarda, educação e vigilância. Se, no prazo de um mês, o menor não fosse reclamado, este seria declarado abandonado, sendo providenciado seu destino (Brasil, 1921).
A lei fixou a idade de responsabilidade criminal em 14 anos e suprimiu o critério do ‘discernimento’, que era objeto de contestação desde o século anterior. Entre 14 e 18 anos, o menor autor de crime ou contravenção seria submetido a processo especial. Não sendo considerado abandonado, moralmente pervertido ou necessitado de tratamento especial, o menor julgado culpado seria recolhido a uma escola de reforma pelo prazo de um a cinco anos. Foi também prevista a internação e encaminhamentos diversos para os menores considerados como alienados, pervertidos ou “em perigo de o ser” (Brasil, 1921).
O regulamento da assistência e proteção aos menores abandonados e delinquentes foi aprovado apenas em 1923, pelo decreto n. 16.272, de 20 de dezembro. O decreto definiu quem se enquadrava na categoria de menor abandonado, reproduzindo o texto da lei n. 4.242; delimitou o escopo de outras categorias, como vadios, mendigos e libertinos; e especificou alguns dos itens presentes no ato anterior. Contou com uma parte especial, dedicada exclusivamente ao Distrito Federal, que determinou a instituição do Juízo Privativo dos Menores Abandonados e Delinquentes, a exemplo de outros países, onde já existiam tribunais especializados, como Estados Unidos e França (Alvarez, 1989, p. 154; 157).
O juízo tinha como competências processar e julgar o abandono de menores e os crimes ou contravenções por eles perpetrados; inquirir e examinar sobre seu estado físico, mental e moral, bem como a situação social, moral e econômica dos responsáveis; ordenar as medidas concernentes ao tratamento, colocação, guarda, vigilância e educação dos menores abandonados ou delinquentes; decretar a suspensão ou perda do pátrio poder ou a destituição da tutela; impor e fazer executar as multas prescritas pelo regulamento; fiscalizar os estabelecimentos de preservação, de reforma e outros que acolhessem menores sob sua jurisdição; e organizar uma estatística anual e um relatório, que seriam remetidos para o ministro da Justiça e Negócios Interiores (Brasil, 1923). Para auxiliar o juiz, haveria uma estrutura formada por diversos profissionais, dentre os quais um curador, que acumularia a função de promotor, e um médico-psiquiatra, que representava a incorporação do “espírito científico da época, transcrito para a prática jurídica pelo minucioso inquérito médico-psicológico e social do menor” (Rizzini; Rizzini, 2004, p. 31).
Subordinado ao Juízo de Menores, seria criado um Abrigo de Menores, com o fim de receber provisoriamente, até que tivessem destino definitivo, os menores abandonados e delinquentes. Também foi determinado o estabelecimento de uma escola de preservação para menores do sexo feminino e da Escola de Reforma, para menores criminosos e contraventores, que seria anexa à Escola Quinze de Novembro, além do Conselho de Assistência e Proteção aos Menores (Brasil, 1923).
Pouco tempo depois de aprovado o regulamento, foram iniciados os trabalhos para a preparação de um Código de Menores. O projeto foi elaborado por Melo Matos, nomeado, em 1924, como o primeiro juiz de menores do Distrito Federal (Alvarez, 1989, p. 105). Na justificativa, reproduzida nos Anais do Senado Federal, foi assinalada a necessidade de acréscimos à legislação anterior, incluindo as chamadas crianças da primeira idade, “cujo abandono e cuja mortalidade podem e devem ser combatidos por ações preventivas e repressivas”; os “enjeitados”, sendo determinada a supressão e proibição do sistema das rodas, já eliminado nos “países civilizados”; e o trabalho dos menores, a fim de proibir-lhes ocupações que os expusessem a “perigos morais” (Senado..., 1925, p. 65-66). Também foram propostas uma redefinição da categoria de menores vadios e a reforma de itens referentes à repressão de atos contra a “moralidade, saúde e fraqueza” (Senado..., 1925, p. 66).
O projeto foi aprovado em 1926, pelo decreto n. 5.083, de 1º de dezembro. Seu primeiro capítulo evidenciava a disposição do governo em consolidar as leis de assistência e proteção aos menores, por meio deste ato e de outras medidas necessárias, que dariam origem a um código de menores (Brasil, 1926, p. 22.124-22.125).
O decreto retomou algumas matérias presentes na legislação anterior, mas contou com dispositivos novos que abrangiam questões relacionadas à saúde, trabalho infantil, entre outras.
Dentre os pontos elencados no decreto n. 5.083, destacam-se a transformação das crianças de primeira idade que estivessem fora da casa dos pais ou responsáveis, mediante pagamento de um salário, em “objetos de vigilância da autoridade pública”; e a fixação de regras para a ocupação de mulheres como nutrizes e para intervenção do poder público em lares onde fossem identificadas situações de perigo, más condições de higiene e outras. No Distrito Federal, essa fiscalização ficaria a cargo da Inspetoria de Higiene Infantil, órgão instituído, em 1923, no Departamento Nacional de Saúde Pública (Brasil, 1926, p. 22.124).
Outro acréscimo pode ser observado no capítulo dedicado aos crimes e contravenções, que alterou a redação do artigo 292 do Código Penal e estabeleceu as penas para os responsáveis por abandono de menores, por exposição a perigo de morte ou de grave e iminente dano à saúde, por aplicação de castigos “imoderados”, dentre outras possibilidades (Brasil, 1926, p. 22.127).
Mas a maior novidade trazida pelo ato foi a regulamentação do trabalho infantil. Naquele momento, era grande o número de crianças e adolescentes trabalhando em fábricas e outros estabelecimentos, em condições bastante precárias. A questão, que era uma das demandas do movimento operário, ganhou maior atenção depois da Conferência Internacional do Trabalho, sediada em Washington, em 1919, que deliberou sobre a suspensão do trabalho infantil e a organização de normas que garantissem a educação e o desenvolvimento de crianças e adolescentes (Silva; Miranda, 2018, p. 4).
No entanto, vale assinalar que, na esfera do Distrito Federal, havia, desde 1891, uma legislação referente a essa problemática, o decreto n. 1.313, de 17 de janeiro, que regularizou o trabalho dos menores empregados nas fábricas, instituindo uma fiscalização permanente, atribuída a um inspetor que seria estabelecido no âmbito da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior. Nesses locais, ficava proibido o trabalho de crianças menores de 12 anos, salvo a título de aprendizado nas fábricas de tecidos. Os menores do sexo feminino de 12 a 15 anos e os do sexo masculino de 12 a 14 só poderiam trabalhar, no máximo, sete horas por dia, não consecutivas, de modo a não exceder quatro horas de trabalho contínuo; e os do sexo masculino de 14 a 15 anos, até nove horas, nas mesmas condições. Foram fixadas, igualmente, exigências relacionadas a ventilação, ocupação do espaço e multas para casos de descumprimento da legislação. Apesar dessas determinações, o ato não promoveu alterações efetivas nas relações de trabalho, permanecendo a utilização disseminada da mão de obra infantil (Silva; Miranda, 2018, p. 4; Brasil, 1891, p. 326-328).
O decreto de 1926 proibiu o trabalho de menores de 12 anos em todo território nacional e estipulou o valor das multas e outras penalidades para aqueles que infringissem a lei. Para aqueles que não tivessem completado a instrução primária, a idade mínima subia para 14 anos, a mesma exigida para o emprego em locais como usinas, manufaturas, estaleiros, minas, pedreiras ou oficinas. Para trabalhos considerados perigosos à saúde, à vida e à moralidade, ou excessivamente fatigantes, a permissão somente seria dada a partir dos 18 anos. Houve disposições específicas para representações teatrais ou em outras casas de diversões. Nestas, não poderiam ser empregados como atores figurantes do sexo masculino com menos de 16 anos, e do sexo feminino, de 18, salvo autorização excepcional da autoridade competente. Para os cafés-concertos e cabarés, a proibição ia até a maioridade. Proibiu-se, também, o desempenho de qualquer ocupação nas vias públicas para menores de 14 anos do sexo masculino, e de 18, do sexo feminino; e de exercícios circenses praticados por acrobatas, saltimbancos, ginastas e mostradores de animais aos menores de 16 anos (Brasil, 1926, p. 22.126-22.127).
Essas determinações desagradaram os empresários, que alegaram que seu cumprimento acarretaria prejuízos para a produção e até para a sobrevivência das famílias operárias. Segundo vários autores, a maior parte deles não observou a legislação, o que acabou neutralizando seus efeitos (Alvarez, 1989, p. 174-175).
Em 1927, o decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro, data que foi instituída como “o dia de festa da criança” em 1924, aprovou a consolidação da assistência e proteção a menores. Como referido acima, o ato ficou conhecido como Código de Menores ou Código Melo Matos.
O código constituiu-se, para alguns autores, como “síntese de todo um movimento em prol do menor” iniciado no princípio do século (Alvarez, 1989, p. 158), que “incorporou tanto a visão higienista de proteção do meio e do indivíduo, como a visão jurídica repressiva e moralista”, presentes nos debates, representando a “realização mais acabada” dos ideais da escola penal positivista (Alvarez, 1996, p. 192; Faleiros, 1995, p. 63). Desse modo, o código implementou um conjunto de “mecanismos de vigilância, de apreensão, de classificação, de julgamento e de distribuição”, que contribuiu para deslocar o eixo de tutela dos menores, da família em direção ao Estado (Alvarez, 1989, p. 151).
Composto por 231 artigos, o código ampliou uma série determinações presentes na legislação anterior. No capítulo primeiro, estabeleceu como seu objeto o menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tivesse menos de 18 anos de idade. Os outros capítulos foram dedicados às crianças de primeira idade, infantes expostos, menores abandonados, perda do pátrio poder e remoção de tutela, medidas aplicáveis a menores abandonados, menores delinquentes, liberdade vigiada, trabalho, vigilância e crimes e contravenções.
Diferente do que foi observado nos outros atos, a questão da liberdade vigiada mereceu um tópico específico, que reproduziu as disposições vistas anteriormente. Poderiam obter a liberdade vigiada, e ficar sob a observação do juiz, os menores que tivessem 16 anos completos; cumprido, pelo menos, o mínimo legal do tempo de internação; não praticado outra infração; fossem considerados “regenerados”; aptos a ganhar honradamente a vida, ou que dispusessem de meios de subsistência; e que fossem conviver com pessoa ou companhia considerada idônea, a fim de prevenir a ocorrência de outra infração (Brasil, 1928).
Foram ampliados os casos de proibição de trabalho infantil, abrangendo o emprego de menores de 18 anos na confecção, fornecimento ou venda de escritos, impressos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas, emblemas, imagens e outros objetos cuja venda, oferta, distribuição, afixação ou exposição fossem punidos pelas leis como contrários aos bons costumes (Brasil, 1928).
No capítulo relativo à vigilância, foram preservadas as disposições do decreto do ano anterior, que facultava à autoridade de proteção aos menores a visita às escolas, oficinas e outros locais, bem como às famílias denunciadas. Também foi mantida a proibição de entrada de menores de 14 anos desacompanhados dos pais ou responsáveis nos cinemas, ficando totalmente impedidos de frequentar os cinemas os menores de cinco anos, mesmo acompanhados. Nessa direção, foi determinada a afixação de cartaz, na entrada dos locais de representações, contendo informações sobre os limites de idade para filmes. Esse aspecto foi ressaltado por autores que enfatizaram a presença de dispositivos que abarcavam outras camadas da população, “que não se encaixavam nas categorias de pobreza, abandono e criminalidade”, embora estas fossem os principais focos do código (Pinheiro, 2014, p. 26).
De forma semelhante ao decreto de 1923, o ato de 1927 continha uma parte especial dedicada ao Distrito Federal. O Juízo de Menores teve suas atribuições ampliadas, passando a suprir o consentimento dos pais ou tutores para a aprovação de casamento de menores; conceder a emancipação nos termos do Código Civil; expedir mandado de busca e apreensão; e fiscalizar o trabalho dos menores (Brasil, 1928). Dispondo de uma vasta gama de atribuições, o cargo consolidou-se como o “agente do mecanismo de institucionalização proposto pelo código”, cabendo-lhe proteger a vida, a saúde e a moralidade dos menores (Alvarez, 1989, p. 146).
Após a promulgação do código, houve o questionamento de sua inconstitucionalidade, pelo fato de conter itens que alteravam os códigos civil e penal, entre outros pontos. Manifestada sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, o ato teria longa vigência, sendo revogado apenas pela lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Silva, 2009, p. 6).
Angélica Ricci Camargo
Ago. 2022
Fontes e bibliografia
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Referência da imagem
Arquivo Nacional, Fundo Afonso Pena, BR_RJANRIO_ON_0_FOT_0017
BR_RJANRIO_ON_0_FOT_0017_d0001de0017