Capela da Ordem Terceira do Carmo, que abrigou a Biblioteca Real, em aquarela de Thomas Ender (1793-1875)
Capela da Ordem Terceira do Carmo, que abrigou a Biblioteca Real, em aquarela de Thomas Ender (1793-1875)

O estabelecimento da Biblioteca Real no Brasil ocorreu após a transferência da corte portuguesa para o país, em 1808. Considerada como uma dependência da Casa Real e patrimônio do rei, não teve um ato formal de instituição no Brasil, sendo sua primeira referência na legislação o decreto de 27 de junho de 1810, que mandava acomodá-la no Hospital da Ordem Terceira do Carmo, junto com o Gabinete de Instrumentos de Física e Matemática vindo de Lisboa. Considera-se, no entanto, como marco oficial de sua instalação o decreto de 29 de outubro de 1810, que revogava o de 27 de junho e estabelecia a Biblioteca Real no lugar onde antes estavam as catacumbas dos religiosos do Carmo, junto à Real Capela.

A difusão do uso do papel e a invenção da impressão aumentaram a importância das bibliotecas em toda a Europa e estimularam a formação de bibliotecas reais em vários países, como França e Áustria. Em Portugal, a tradição real de reunir livros no Paço teve início no século XV, com D. João III, mas somente no século XVIII a Biblioteca Real tomou grandes proporções e, para isso, contribuíram livreiros, agentes diplomáticos e estrangeiros. No entanto, a história da biblioteca que acabou sendo transferida para o Brasil em 1808 começou no reinado de d. José I (1750-1777), a partir da antiga coleção, destruída pelo terremoto que atingiu a cidade de Lisboa em 1755. Em meio à política ilustrada do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, a reconstrução da biblioteca ganhou relevo e foi iniciada uma nova coleção, formada com o pouco que sobrou da destruição, acrescida da compra de acervos privados, doações e recolhimento de conjuntos esquecidos nos mosteiros ou abandonados pelos jesuítas após sua expulsão em 1759.

O acervo era composto de livros de religião, história, filosofia, belas-artes e ciências naturais, além de atlas, cartas geográficas, estampas, gravuras, medalhas e moedas. Instalada no Palácio Real da Ajuda, dividia-se em duas coleções, a Livraria Real, restrita aos monarcas, e a do Infantado, dedicada à formação dos seus filhos. Nesse período, foi construída ainda a Real Biblioteca Pública da Corte, aberta ao público em 1797, como resultado dos trabalhos de análise da Real Mesa Censória, instituída em 1768 e extinta em 1794. Como dependência do Paço, a Biblioteca Real ficava sob a direção do mordomo-mor da Casa Real, sendo inicialmente dirigida por um guarda e amanuense. A partir de 1802, estes passaram a ser denominados prefeitos, sendo também nomeados um ajudante, um praticante e dois serventes para seu serviço (Schwarcz, 2002).

Com a transferência da corte, parte da coleção da Biblioteca Real foi enviada para o Brasil em várias remessas até o ano de 1811. Apesar da previsão de ser instalada no andar superior do prédio ocupado pelo hospital da Ordem Terceira do Carmo, o decreto de 29 de outubro de 1810, analisando a falta de cômodos e de luz necessários ao seu abrigo, mandou acomodá-la nas catacumbas dos religiosos do Carmo, o que não se concretizou. Mais tarde, passou a ocupar também o andar térreo do hospital, onde se localizava a enfermaria. A princípio, a Biblioteca Real ficou a cargo de dois prefeitos, frei Gregório José Viegas, responsável pela administração, e frei Joaquim Dâmaso, a quem coube seu “arranjamento e conservação”. Vindos da Biblioteca do Palácio da Ajuda, um ajudante, Luís Joaquim dos Santos Marrocos, e alguns serventes completaram o quadro inicial de funcionários (Schwarcz, 2002, p. 274-275).

Nesse período, os livros foram organizados em cinco classes principais, jurisprudência, teologia, ciências e artes, belas-artes e história, que eram divididas em subconjuntos. Entre as coleções da Biblioteca Real, adquiridas por meio de compra ou doação, figuravam a de Guilherme Dugood, artista e ourives inglês que trabalhou em Lisboa, onde se destaca um conjunto de estampas do gravador italiano Piranesi, e a de Barbosa Machado, incorporada ao patrimônio real entre 1770 e 1773, contendo tanto obras impressas quanto conjuntos de iconografia, mapas, vistas e plantas de fortalezas. No Brasil, foram adquiridas ainda a coleção de José da Costa e Silva, a biblioteca do conde da Barca, composta de livros e curiosidades sobre a natureza e a arte, e a coleção de frei José Mariano da Conceição Veloso, incluindo os estudos científicos e desenhos originais preparados para sua obra Flora fluminensis. Em 1812, a Impressão Régia ficou encarregada da remessa de todo material impresso no Brasil para a Biblioteca Real, prática que também existia em Portugal (Cunha, 2000; Schwarcz, 2002, p. 281).

Por ordem de d. Fernando José de Portugal, o conde de Aguiar, mordomo-mor da Casa Real, ministro e secretário dos Negócios do Brasil e presidente do Erário Régio, em 1811 a Biblioteca Real foi aberta aos estudiosos com a permissão régia e, em 1814, franqueada ao público. Além disso, em 1811, a decisão n. 28, de 25 de junho, aprovou a criação de uma Biblioteca Pública na Bahia, idealizada por Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco, que doou seu acervo particular e teve sua iniciativa seguida por outros cidadãos. Em 1818, determinou-se que as obras duplicadas da Biblioteca Real fossem remetidas para a biblioteca da Bahia (Pinheiro, 2001, p. 243; Schwarcz, 2002, p. 281).

Em 1821, foram impressos os estatutos da Biblioteca Real, que a colocavam sob a direção do mordomo-mor ou do ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino que servisse de mordomo-mor, como ocorria em Portugal. Dispunha também que todos os empregados gozariam dos mesmos direitos, privilégios, foros e preeminências dos criados da Casa Real. Para sua administração, havia um prefeito, um ajudante, dois escreventes e os serventes que fossem necessários. Ao prefeito caberia a organização da Biblioteca; a compra de livros e manuscritos, e sua posterior classificação; a nomeação de um livreiro encadernador; não consentir a instalação de oficina em área próxima, que pusesse em risco a Biblioteca; o tratamento adequado àqueles que viessem estudar; e dar ordens à guarda militar que ocupava suas dependências. Além disso, os estatutos previam a existência de um índice geral alfabético de todos os livros impressos, um índice dividido em classes ou matérias, uma lista das obras proibidas e uma contendo os livros e papéis manuscritos, e uma relação dos exemplares duplicados. A Biblioteca deveria abrir todos os dias que não fossem feriados, das nove da manhã ao meio-dia, reabrindo às quatro e meia da tarde para fechar antes do anoitecer, não sendo permitida a entrada de luz artificial. Contudo, se alguma “pessoa de consideração” desejasse, poderia ser aberta mesmo em feriado, sendo o empréstimo permitido somente com ordem do ministro diretor.

Com o retorno da família real e como resultado das negociações em torno da consolidação da independência, parte dos documentos manuscritos referentes à história de Portugal foi levada de volta à Europa, ficando o restante na Biblioteca no Rio de Janeiro. O acervo da biblioteca figurou nas cláusulas do Tratado de Paz e Amizade com Portugal, em 1825, e entre os itens que constam no documento intitulado “Conta dos objetos que Portugal teria direito de reclamar ao Brasil”, pelos quais o Brasil teve que pagar uma indenização. Em 1822, a Biblioteca Real passou a ser chamada de Biblioteca Imperial e Pública (Schwarcz, 2002, p. 393-395).

 

Angélica Ricci Camargo
Nov. 2011

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

Fontes e bibliografia

CUNHA, Lygia Fonseca da. Subsídios para a história da Biblioteca Nacional. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 101, p. 123-146, 1981.

______. Real Biblioteca: apontamentos sobre seu acervo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE D. JOÃO VI: um rei aclamado na América, 1999, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000. p. 208-220.

ESTATUTOS da Real Biblioteca mandados ordenar por Sua Majestade. Rio de Janeiro: Régia Tipografia, 1821.

GARCIA, Rodolfo. Explicação das cartas de Joaquim dos Santos Marrocos, escritas do Rio de Janeiro, à sua família em Lisboa, de 1811 a 1821. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 56, p. 5-25, 1934.

PINHEIRO, Ana Virgínia. Da Real Biblioteca à Biblioteca Nacional. In: ROBERTO, Paulo (org.). Brasiliana da Biblioteca Nacional: guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2001. p. 241-250.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional

BR_RJANRIO_92 Série Educação - Cultura - Belas-Artes - Bibliotecas - Museus (IE7)

BR_RJANRIO_2H Diversos SDH - Caixas

BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo - Período Imperial

BR_RJANRIO_97 Série Educação - Gabinete do Ministro (IE1)

BR_RJANRIO_AF Série Justiça - Administração (IJ2)

BR_RJANRIO_NP Diversos SDH - Códices

 

Referência da imagem

Júlio Bandeira; Robert Wagner. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender: 1817-1818. Petrópolis: Kappa Editorial. ACG01828

 

 

Este verbete refere-se apenas à trajetória do órgão no período colonial. Para informações entre 1822-1889 e 1889-1930, consulte Biblioteca Imperial e Pública e Biblioteca Nacional