Desembargadores da Casa de Suplicação, em litografia do livro Viagem pitoresca, publicado em 1839, de Jean-Baptiste Debret
Desembargadores da Casa de Suplicação, em litografia do livro Viagem pitoresca, publicado em 1839, de Jean-Baptiste Debret

A Casa de Suplicação do Brasil foi instituída pelo alvará de 10 de maio de 1808, por meio da transformação da Relação do Rio de Janeiro em tribunal superior de última instância, com a mesma alçada da Casa da Suplicação de Lisboa. Tal acontecimento foi resultado da transferência da corte para o Brasil, em 1808, e da consequente conversão do país em sede da monarquia portuguesa, o que provocou profundas mudanças políticas e administrativas. Nesse período, houve a instalação de um complexo sistema administrativo judicial, com a criação de importantes órgãos, como o Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens, diversos juízos privativos, o Conselho Supremo Militar e de Justiça, e as relações do Maranhão e do Recife.

A Casa de Suplicação era o tribunal supremo de Portugal, encarregado do julgamento em última instância dos pleitos judiciais (Hespanha, 1994, p. 228-229). Exercia jurisdição, em segunda instância, sobre as províncias de Estremadura, Alentejo, Algarve, comarcas de Castelo Branco e Ultramar. Em última instância, a Casa de Suplicação encarregava-se de receber os agravos e apelações da Casa do Cível do Porto e, naquilo que excedia sua alçada, das ilhas atlânticas e do ultramar, além dos juízos privativos e comissões cíveis e criminais.

As atribuições referentes às colônias do ultramar foram diminuídas, com a criação de tribunais fora da metrópole. A Relação de Goa foi instalada em 1554, constituindo-se no primeiro tribunal de apelação fundado fora dos limites de Portugal, numa tentativa de reduzir o volume dos processos e agilizar a aplicação da justiça nas possessões ultramarinas (Schwartz, 1979, p. 17). O Brasil teve sua primeira corte de apelação com o estabelecimento da Relação da Bahia que funcionou de 1609 a 1626, quando invasão holandesa acabou ocasionando a suspensão de suas atividades, que foram restauradas somente em 1652 (Relação do Rio de Janeiro, 1994, p. 692-693).

A Relação do Rio de Janeiro foi o segundo tribunal de apelação do Brasil. Criada em 13 de outubro de 1751, sua organização foi resultado do aumento da demanda judicial, associada à morosidade e ineficiência na administração da justiça na colônia (Silva, 1997, p. 316). Presidida pelo governador da capitania do Rio de Janeiro, era composta de dez desembargadores, que desempenhavam, cumulativamente, diferentes funções: um chanceler, que servia também de ouvidor e juiz da Chancelaria; cinco desembargadores dos agravos e apelações; um ouvidor-geral do crime; um ouvidor-geral do cível; um juiz dos feitos da Coroa e Fazenda, que servia igualmente de juiz do Fisco, aposentador-mor e almotacé-mor; e um procurador dos feitos da Coroa e da Fazenda, que era ainda promotor de justiça e juiz das despesas.

Desde 1766, pela carta régia de 22 de julho, o desembargador ouvidor-geral do crime acumulava a função de intendente da Polícia do Rio de Janeiro, antes de ser instituída a Intendência-Geral de Polícia, com a mesma jurisdição que tinha o órgão em Portugal, por meio do alvará de 10 de maio de 1808. Cabia ainda ao desembargador ouvidor-geral do crime, de acordo com o alvará de 12 de agosto de 1801, a função de juiz dos cavaleiros das ordens militares. No entanto, com a criação do Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens, pelo alvará de 22 de abril de 1808, o cargo de juiz dos cavaleiros foi estabelecido no Brasil, desincumbindo-se o ouvidor-geral do crime desta atribuição.

Havia também, na estrutura da Relação do Rio de Janeiro, oficiais e outros funcionários, além de uma Mesa que deveria tratar das matérias pertinentes ao Desembargo do Paço, como a expedição de alvarás de fianças, petições e perdões. A Mesa do Desembargo compunha-se do governador da Relação, do chanceler e do desembargador de agravos mais antigo. Esta Mesa foi extinta na Relação do Rio de Janeiro por ocasião da criação do Tribunal da Mesa de Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens, que, segundo o alvará de 22 de abril de 1808, assumiu suas jurisdições.

A Relação do Rio de Janeiro tinha por distrito todo o território ao sul da Bahia, compreendendo treze comarcas, a saber: Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, Rio das Mortes, Sabará, Rio das Velhas, Serro do Frio, Cuiabá, Goiás, Itacases (Campos dos Goitacases), Ilha de Santa Catarina, Paranaguá e Espírito Santo. Quando transformada em Casa de Suplicação, sua jurisdição passou a incluir os agravos ordinários e as apelações do Pará, Maranhão, ilhas de Açores e Madeira, bem como a Relação da Bahia. Ficava a Relação da Bahia subordinada à Casa de Suplicação da Corte, para onde se interporiam os agravos e apelações que até então eram remetidos para a Suplicação de Lisboa.

O alvará de 6 de maio de 1809 provocou alterações na jurisdição da Casa de Suplicação, ao estabelecer que os agravos ordinários e apelações do Pará, Maranhão, ilhas de Açores, Madeira e Porto Santo deveriam ser remetidos à Casa de Suplicação de Lisboa, para onde eram mais curtas e frequentes as viagens, ficando sob a jurisdição da Suplicação do Brasil os recursos saídos apenas dos distritos da Relação da Bahia e da antiga Relação do Rio de Janeiro. Nova alteração deu-se pela resolução de consulta n. 11 da Mesa do Desembargo do Paço, de 20 de maio de 1814, que definiu que os recursos das comarcas de Mato Grosso e São João das Duas Barras deveriam ser interpostos para a Casa de Suplicação do Brasil, ao invés da Relação do Maranhão, criada em 1812.

A estrutura jurídica portuguesa previa a existência de juízos privativos que asseguravam jurisdição em primeira instância às matérias relativas a privilegiados, como os nobres, as instituições eclesiásticas e os oficiais da Corte, os incapacitados para defesa de seus direitos, como órfãos, menores e pessoas miseráveis, ou causas de interesse da Coroa, como as relativas ao comércio e aos vassalos das nações aliadas (Monteiro, 1993, p. 352-353). Os desembargadores da Casa de Suplicação acumulavam ainda a atribuição de julgamento dos pleitos judiciais de última instância com as causas referentes aos juízos privativos que foram instituídos.

Com a transferência da corte para o Brasil, houve a ampliação e diversificação de interesses administrativos, políticos, econômicos e de ordem social, impondo a criação desses juízos para dirimir conflitos e disputas. A partir de 1808, temos o estabelecimento de inúmeros juízos privativos, como, por exemplo, o juiz conservador dos ingleses (1808), juiz dos feitos para a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (1811), juiz privativo do Banco do Brasil (1812), juiz conservador do Hospital dos Lázaros (1815), juiz privativo da Caixa de Desconto da Bahia (1816) e juiz de direito nas causas de abuso de liberdade de imprensa (1822). Com a intensificação do comércio e a criação do Tribunal da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, foram ainda criados os cargos de superintendente-geral do contrabando (1809) e juiz conservador dos privilegiados e dos falidos (1809), cargos desmembrados em 1810.

A Revolução Liberal do Porto e a convocação das Cortes Gerais e Extraordinárias para elaborar uma Constituição para Portugal mudaram a conjuntura política do período. Uma das medidas adotadas pelas Cortes Gerais Extraordinárias foi a lei de 13 de janeiro de 1822, que extingue os tribunais criados no Rio de Janeiro após a vinda da Corte em 1808, reduzindo a Casa de Suplicação à condição de relação provincial, como as da Bahia, Recife e Maranhão, cujos recursos e apelação deveriam ser interpostos para Lisboa. A adoção desta e de outras medidas que visavam reforçar a condição colonial brasileira indicava um claro retrocesso e o recrudescimento dos conflitos, que culminaram no processo de independência do país em 1822.

Após a independência, a Constituição de 1824 promoveu mudanças na estrutura da administração da justiça, prevendo a criação de um novo tribunal, o Supremo Tribunal de Justiça, e de tribunais da relação nas províncias em que se fizessem necessários. As relações deveriam julgar as causas em segunda e última instância, estando sujeitas ao Supremo Tribunal de Justiça. Com o estabelecimento deste tribunal em 1828, a Casa de Suplicação e a Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens foram extintas, e as matérias a elas atribuídas passaram para a jurisdição dos juízes de primeira instância, juízes criminais, juízes de órfãos, relações provinciais, Tesouro e juntas de Fazenda, Supremo Tribunal de Justiça e secretarias de Estado. No entanto, apesar de extinta, a Casa da Suplicação do Brasil continuou exercendo suas atividades até 1833, quando se restaurou a Relação do Rio de Janeiro, retornando à sua condição de tribunal local. Sua jurisdição passou a abranger as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

Dilma Cabral
31 ago. 2011


Fontes e bibliografia
HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal (século XVII). Coimbra: Almedina, 1994.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. v. 4: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. p. 333-379.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Relação do Rio de Janeiro In: ______ (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa; São Paulo: Verbo, 1994. p. 696-697.

SILVA, Paulo Roberto Paranhos da. A Casa da Suplicação no Brasil. Revista da Asbrap, n. 4, ano 0, p. 89-96, 1997.


Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_EJ Casa da Suplicação do Brasil
BR_RJANRIO_84 Relação do Rio de Janeiro
BR_RJANRIO_OI Diversos GIFI - Caixas e Códices
BR_RJANRIO_2H Diversos SDH - Caixas
BR_RJANRIO_MX Códices do Poder Judiciário
BR_RJANRIO_20 Corte de Apelação
BR_RJANRIO_22 Decretos do Executivo - Período Imperial
BR_RJANRIO_NP Diversos - SDH - Códices
BR_RJANRIO_RD Marquês do Lavradio
BR_RJANRIO_53 Ministério do Império
BR_RJANRIO_AA Série Interior – Negócios de Províncias e Estados (IJJ9)
BR_RJANRIO_AI Série Justiça – Gabinete do Ministro (IJ1)
BR_RJANRIO_AK Série Justiça - Magistratura Local (DF) - Territórios – Juízes -Desembargadores (IJ5)
BR_RJANRIO_A0 Série Justiça - Prisões - Casas de Correção (IJ7)
BR_RJANRIO_BU Supremo Tribunal de Justiça
BR_RJANRIO_D8 Vara Federal do Rio de Janeiro, 1
BR_RJANRIO_R7 Visconde de Cairu
BR_RJANRIO_ZI Juízo da Conservatória Inglesa


Referência da imagem
Jean Baptiste Debret. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou Séjour d’un Artiste Français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831 inclusivement, epoques de l’avénement et de I’abdication de S.M. D. Pedro 1er. Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. Arquivo Nacional, OR_1909_V3_PL27