O Código Civil foi instituído pela lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, a partir de projeto de lei elaborado pelo jurista Clóvis Beviláqua, e sancionado no governo de Venceslau Brás, após intensos debates e uma longa trajetória legislativa no Congresso Nacional. O Código Civil de 1916 é considerado pela historiografia uma legislação de caráter fortemente liberal, sob influência do processo de codificação do direito civil que se verificou no século XIX, especialmente do Código Civil alemão, de 1900, expressando as contradições da sociedade brasileira de seu período.
Após a independência, a lei de 20 de outubro de 1823 manteve a legislação pela qual se regia o Brasil até 25 de abril de 1821, ficando em vigor, na parte em que não tivessem sido revogadas, as ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas por Portugal. Na prática, o ato mantinha a vigência, no tocante ao direito civil, das Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, durante a União Ibérica, e confirmadas pela lei de 29 de janeiro de 1643, que em Portugal foi revogada pelo Código Civil, aprovado em 1867, sob influência do código napoleônico (Rodrigues Júnior, 2013).
Apesar do longo período em que as Ordenações regularam as relações civis no Brasil, por mais de três séculos, a conjuntura pós-independência caracterizou-se por intensa atividade legislativa, verificando-se a formação do aparato legal da jovem nação, que se prolongaria por todo o Segundo Reinado. Neste período, foi aprovada a primeira Constituição brasileira (1824), o Regimento das Câmaras Municipais (1828), o Código Criminal (1830), o Código de Processo Criminal (1832), o Ato Adicional (1834) e a Lei de Interpretação do Ato Adicional (1840). Fez parte ainda deste processo de consolidação da independência e de produção normativa autônoma a criação dos Cursos Jurídicos, pela lei de 11 de agosto de 1827, que instituiu escolas de ciências jurídicas e sociais nas cidades de São Paulo e Olinda. A fundação dos cursos e a formação de uma elite jurídica no país, seguida pela elaboração de um arcabouço legislativo próprio, responderam pela formação autônoma da ordem político-jurídica nacional e da doutrina política do direito público brasileiro (Wolkmer, 2011, p. 100-103).
Na verdade, não foram poucas as tentativas de elaboração de um código civil no Brasil. A ausência de codificação do direito civil e a necessidade de ordenar a complexa base jurídica que regulava tais relações estiveram expressas na Constituição de 1824, que previa, no título referente às Disposições gerais, e garantias dos direitos civis, e políticos dos cidadãos brasileiros, que seriam organizados um código civil e um criminal (Brasil. Constituição (1824), art. 179, parágrafo 18). De fato, o Código Criminal do Império do Brasil foi aprovado pela lei de 16 de dezembro de 1830, em substituição ao Livro V das Ordenações Filipinas (1603). No caso da legislação civil, apenas em 1855 o advogado Augusto Teixeira de Freitas foi convidado pelo secretário e ministro da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, José Joaquim Nabuco de Araújo, a realizar uma compilação da legislação vigente no Brasil, inclusive portuguesa, anterior à Independência, publicada com o título Consolidação das leis civis, e aprovada pelo decreto n. 2.318, de 22 de dezembro de 1858. Em 1859, Teixeira de Freitas seria contratado para elaborar um código civil, que não foi concluído (Grinberg, 2008; Neves, 2015; Salgado, 2019).
Nos anos de 1871 e 1872, duas novas tentativas de elaboração de um código civil foram realizadas – a primeira por Antônio Luís de Seabra e Sousa, o visconde de Seabra, autor do código civil português aprovado em 1867, e a segunda pelo ex-secretário de Estado da Justiça, Nabuco de Araújo, que assinou contrato com o governo Imperial, a convite do novo titular da pasta, Manuel Antônio Duarte de Azevedo –, mas ambas ficaram incompletas. Em 1878, uma nova proposta seria apresentada pelo jurista e senador Joaquim Felício dos Santos, que recebeu autorização do secretário da Justiça, Lafaiete Rodrigues Pereira, o conselheiro Lafaiete, para elaborar um novo projeto de código civil. Entregue a proposta, em 1881, ao secretário da Justiça, Manuel Pinto de Sousa Dantas, foi submetida à Câmara dos Deputados no ano seguinte, e publicado o projeto em 1884, abandonado após uma trajetória legislativa acidentada. Em 1883, Antônio Coelho Rodrigues apresenta projeto elaborado a partir da proposta de Felício dos Santos, que teve o destino dos demais e não foi aceito (Salgado, 2019; Chaves, 2000). Em 1889, verifica-se uma nova investida, com a constituição de uma comissão, sob a presidência do imperador d. Pedro II, cujos trabalhos foram encerrados com a Proclamação da República (Grinberg, 2008; Chaves, 2000).
As tentativas de elaboração de um código civil brasileiro e a longevidade da utilização das Ordenações do Reino no Brasil, mesmo já revogadas em Portugal, vêm sendo analisadas pela historiografia do direito. Em Portugal, o iluminismo e a Revolução de 1820 se insurgiram contra a tradição jurídica absolutista, o que assinalou uma forte presença das ideias liberais na elite política portuguesa, e que teria influência direta no direito privado luso. O Código Civil português absorveu os princípios da Revolução Francesa, rompendo com os moldes de uma sociedade organizada sob a monarquia absoluta, tendo forte presença o ideário liberal e individualista da renovação jurídica experimentada pela Europa (Cruz, 1955; Gomes, 2003). O período pós-independência marcaria, portanto, uma ruptura nas tradições jurídicas portuguesa e brasileira, quando Portugal passou a estar sob forte inspiração do pensamento liberal, o que se consumou na aprovação do Código Civil de 1867, enquanto o Brasil manteve a aplicação das Ordenações do Reino, sem grandes mudanças ou descontinuidades (Fonseca, 2006).
A longa vigência das Ordenações pode ser compreendida sob diferentes perspectivas. A primeira diz respeito às lacunas em seu texto, o que abria espaço para que as omissões fossem preenchidas de diferentes formas, conferindo grande flexibilidade à sua aplicação no Brasil, mesmo após a independência (Leal; Borges, 2017; Gomes, 2003; Fonseca, 2006). Por outro lado, enquanto em Portugal o direito privado introduzia inúmeras inovações, expressão do individualismo jurídico, no Brasil não houve um rompimento com a estrutura político-jurídica e social. Assim, o país pós-independência “manteve-se inspirado na antiga tradição cultural ibérica, alheia ao iluminismo libertário, à ênfase nos direitos naturais e à liberdade individual” (Cruz, 1955, p. 66).
O processo de codificação civil fez parte do contexto político da segunda metade do século XIX, ao assegurar direitos e defender o indivíduo frente ao Estado, e assinalava o rompimento com a sociedade absolutista e o surgimento de uma nova ordem social e jurídica (Tomasevicius Filho, 2016). E ainda, a demanda por um código civil brasileiro acabava por envolver a reafirmação do lugar do Brasil entre as nações modernas e civilizadas, processo em que a codificação do direito civil acabava por emergir como uma dimensão da independência, mas também dos valores liberais na ordem jurídica privada que formataram a conjuntura do período, ainda que em total dissonância com a manutenção da escravidão e com os valores tradicionais da sociedade.
Assim, proclamada a República, os anseios por um código civil se mantiveram na pauta política do governo provisório que assumiu em 1889. É importante lembrar que o Governo Provisório aprovou um novo projeto de Código Penal, em 1890, elaborado pelo conselheiro João Batista Pereira, antes mesmo da Constituição. Desta forma, o projeto de uma codificação civil tomava fôlego, sendo encarregado o advogado e senador Antônio Coelho Rodrigues, em 1890, de elaborar um projeto de código civil, concluído somente em 1893, mas que não foi aprovado pela comissão revisora, não chegando a tramitar na Câmara dos Deputados (Neves, 2015). Promulgada a Constituição de 1891, que incorporara em seu texto o liberalismo ortodoxo, um obstáculo à inclusão das reformas sociais, não se verificaram avanços no tocante à garantia dos direitos civis. Pode ser assinalado, inclusive, um retrocesso, já que os estados deixavam de ter “por obrigação fornecer educação primária, constante da Constituição de 1824” (Carvalho, 2002, p. 62).
Mas foi somente em 1899, no governo do presidente Campos Sales, que o advogado Clóvis Beviláqua, professor da Faculdade de Direito do Recife, foi convidado pelo ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, a elaborar o projeto de um código civil, dando início a uma longa trajetória, que seria concluída com sua aprovação somente em 1916, após 17 anos. Se por um lado a República reforça a demanda pela definição de uma legislação civil nacional, em consonância aos interesses econômicos e sociais do país, e que assinalasse a superação institucional do Império (Veronese, 2011), por outro, o imperativo de uma legislação civil impunha-se também pela necessidade de regular uma sociedade que passava por transformações, especialmente com o fim da escravidão e a separação entre Estado e Igreja, o que exigia uma legislação moderna e compatível com os novos tempos (Veronese, 2011). Assim, a aprovação de um código civil esteve em acordo com a expansão das atividades econômicas, sobretudo dos bancos e casas de crédito, que exigiam uma legislação que protegesse as relações comerciais, principalmente do capital estrangeiro (Salgado, 2019).
Beviláqua concluiu o projeto de código civil em menos de um ano, quando começou a ser discutido pela primeira comissão revisora, composta pelo ministro Epitácio Pessoa, que a presidia, Olegário Herculano de Aquino e Castro, Joaquim da Costa Barradas, Anfilófio Botelho Freire de Carvalho, Francisco de Paula Lacerda de Almeida, João Evangelista Sayão de Bulhões Carvalho, e secretariada por Antônio José Cupertino do Amaral. Em 1900, o projeto foi enviado à Câmara dos Deputados, iniciando-se a análise e sendo garantida a ampla participação de pareceristas externos, como órgãos jurídicos, superiores tribunais de Justiça dos estados, faculdades de direito e juristas, bem como o próprio autor do projeto, Clóvis Beviláqua. Nesta fase, forma-se uma comissão, composta por 21 deputados, sob a relatoria do deputado Sílvio Romero, para análise e debate do projeto e dos pareceres recebidos (Salgado, 2019).
Após o término dos trabalhos na Câmara dos Deputados, em que o projeto sofreu inúmeras emendas, foi aprovado e remetido ao Senado, onde se constituiu nova comissão revisora, sob a presidência de Rui Barbosa, grande opositor da proposta de código civil apresentada por Beviláqua. Considerado um dos maiores juristas de seu tempo, Rui Barbosa era um nome de destaque no cenário político, foi jornalista, deputado provincial e geral, ministro da Fazenda do governo provisório de Deodoro da Fonseca (1889-1891) e, interinamente, da Justiça e Negócios Interiores, e candidato a presidente da República em diferentes pleitos. Dedicou duas obras à análise do projeto de código civil, Parecer sobre a redação do projeto da Câmara dos Deputados (1902) e Réplica do senador Rui Barbosa às defesas da redação do projeto da Câmara dos Deputados (1902).
A história do código civil foi marcada, assim, pelo embate entre seu autor, Clóvis Beviláqua, e o senador Rui Barbosa, que apresentou, em 1902, seu parecer em que criticava a pressa na tramitação. No parecer, deteve-se à forma do projeto, não analisando as questões relativas aos fundamentos ou conceitos jurídicos, mas apenas aspectos linguísticos. Provenientes de culturas jurídicas distintas, Beviláqua integrava a chamava Escola de Recife, com forte influência da doutrina jurídica alemã, e Rui Barbosa, crítico dessa tradição culturalista, concluíra seus estudos na Faculdade de Direito de São Paulo, orientada pelo direito francês e “de clara inspiração da autossuficiência e do positivismo do Código Napoleônico” (Leal; Borges, 2017; Marques, 2016).
O parecer de Rui Barbosa ganhou rapidamente projeção, em meio à qual se posicionaram os defensores de Beviláqua e os críticos do projeto apresentado. Somente em 1905, Bevilaqua publica a obra Em defesa do projeto do Código Civil, que responde às críticas de Rui Barbosa. Em 1908, retomam-se os trabalhos no Senado, com a nomeação de uma comissão, que não concluiu a revisão. Em 1913, foi nomeada nova comissão na Câmara dos Deputados, que avaliou as emendas propostas. Ainda naquele ano, o projeto volta ao Senado para nova discussão, quando uma comissão especial foi nomeada para análise do projeto e suas emendas, retornando à Câmara para análise das alterações realizadas pelos senadores (Salgado, 2019). Finalmente, o Código Civil foi aprovado em dezembro de 1915, e sancionado pelo presidente Venceslau Brás em 1º de janeiro de 1916, após inúmeras alterações em seu projeto original.
A influência alemã no projeto elaborado por Clóvis Beviláqua é apontada pela historiografia do direito, que sublinha ainda que a proposta foi orientada pelo modelo de codificação liberal que vigorou no século XIX e, em especial, pelo Código Civil alemão de 1900. O projeto de código civil, que foi sendo moldado ao longo dos extensos debates que mobilizaram a elite política brasileira, seria marcado pela difícil convivência entre o ideário liberal, o individualismo e os valores morais que caracterizaram o período, e uma sociedade cuja herança colonial limitara os direitos civis e a formação da cidadania (Carvalho, 2002).
O Código Civil de 1916 é estruturado em duas partes, Parte Geral e Parte Especial, além da Introdução, e compõe-se de 1.807 artigos. A Introdução, também conhecida como Lei de Introdução do Código Civil, teve por objetivo orientar sua aplicação, estabelecer determinações gerais e solucionar controvérsias no âmbito do código. Nela constam disposições gerais, como a vigência dos princípios e convenções internacionais, e relativas ao direito internacional privado, direito adquirido, revogação de ato legal e casos omissos. À Introdução seguem-se a Parte Geral, composta por três livros (das pessoas, dos bens, dos fatos jurídicos), e a Parte Especial, integrada por quatro (do direito de família, do direito das coisas, do direito das obrigações e do direito das sucessões). Esta divisão do Código Civil inspirou-se nos projetos de Teixeira de Freitas e de Coelho Rodrigues, “mas também na legislação comparada e na ciência jurídica da época, segundo Beviláqua” (Marques, 2016).
A Parte Geral do Código Civil trata da divisão das pessoas, naturais e jurídicas, e do domicílio civil; dos bens e suas diferentes classes; e dos fatos jurídicos, dos atos jurídicos, dos atos ilícitos, da prescrição. No Livro I, Das pessoas, o código definiu o início da personalidade civil no nascimento, não distinguindo entre nacionais e estrangeiros quanto aos direitos civis. Eram incapazes para a vida civil os menores de dezesseis anos, os loucos, os surdos-mudos, que não pudessem exprimir a sua vontade, e os ausentes, declarados por ato do juízo. Havia ainda os incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer, considerados os maiores de 16 e os menores de 21 anos, os pródigos e os indígenas. Esses ficavam sujeitos à tutela, conforme estabelecida em leis e regulamentos especiais. Na parte relativa às pessoas jurídicas, são definidas as de direito público interno ou externo, e de direito privado, instituído o registro civil como o início da existência legal da pessoa jurídica.
No Livro II, Dos bens, o Código Civil definiu exaustivamente as diferentes classes de bens, como os móveis e imóveis, os fungíveis e infungíveis, os consumíveis e inconsumíveis, os públicos e particulares e os bens da família. O terceiro livro trata dos fatos jurídicos, e se referia aos defeitos do negócio jurídico. No código foram estabelecidos como atos lícitos os que tivessem por objetivo resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, bem como sua classificação, incluindo ainda os atos ilícitos e a responsabilidade civil subjetiva (Marques, 2016).
A Parte Especial trata do direito de família, do casamento e dos seus efeitos jurídicos, do regime dos bens entre os cônjuges, da dissolução da sociedade conjugal e da proteção da pessoa dos filhos, das relações de parentesco, da tutela, da curatela e da ausência; do direito das coisas, da posse, da propriedade, dos direitos reais sobre coisas alheias; do direito das obrigações, das modalidades e efeitos das obrigações, da cessão de crédito, dos contratos, das várias espécies de contratos, das obrigações por declaração unilateral da vontade, das obrigações por atos ilícitos, da liquidação das obrigações, do concurso de credores; do direito das sucessões, da sucessão em geral, da sucessão legítima, da sucessão testamentária, do inventário e partilha.
O Código Civil expressou o ideário de uma elite conservadora, especialmente em relação ao direito de família, em que prepondera um modelo familiar clássico da organização social brasileira, patriarcal e hierarquizada, com o predomínio da figura masculina e a secundarização da mulher. O código incorporava o direito de família ao direito civil, em virtude da separação entre Estado e Igreja, pelo decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, ratificada a laicidade pela Constituição de 1891. Assim, o Código Civil manteve a indissolubilidade do casamento, não prevendo a possibilidade do divórcio, e o regime de comunhão universal de bens dos cônjuges; previu o casamento do menor de 21 anos, desde que consentido por ambos os pais, prevalecendo a vontade paterna; manteve a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Considerou as mulheres casadas relativamente incapazes, devendo ter autorização para trabalhar e aceitar ou rejeitar herança, ajuizar ações judiciais, cabendo a direção da sociedade conjugal ao marido, e somente em situações excepcionais a esposa poderia administrar os bens do casal.
No Livro II, Do direito das coisas, foi regulado o direito de propriedade em geral, da propriedade imóvel, da aquisição e perda da propriedade móvel, do condomínio, e da propriedade literária, científica e artística. O Código Civil reproduziu a ideia vigente do código francês de considerar a propriedade direito natural e valor em si, distanciando-se do modelo anterior que reconhecia o domínio direto, o domínio útil e sesmarias (Tomasevicius Filho, 2016). Ainda que tenha sido assegurado ao “proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua” (Brasil, 1916, art. 524), mantiveram-se alguns direitos conforme disposto nas Ordenações Filipinas, como os privilégios de domínio ligados à enfiteuse e aos foros (Código..., s.d.).
O Livro III, referente ao direito das obrigações, trata das relações contratuais e extracontratuais, em que se consagram o “princípio da autonomia da vontade e a noção de que os indivíduos têm liberdade plena e sem mediação para contratar”(Zanetti, 2017). A economia brasileira na década de 1910 atravessava um processo de expansão e transformação, em que se reduzia progressivamente o papel de estímulo desempenhado pelo setor exportador, com aumento de investimentos não apenas proveniente da exportação cafeeira, mas como parte do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com a expansão da produção industrial e do setor de serviços no Brasil (Saes, 1989). Assim, a questão do direito das obrigações assume um lugar importante, especialmente em relação aos contratos em espécie, englobando a locação de serviços e procurando disciplinar as relações de trabalho, em virtude da rarefeita legislação protetiva do trabalho, sobretudo com o surto de industrialização e a maior entrada de mão de obra imigrante (Tomasevicius Filho, 2016). No entanto, a visão individualista, baseada na doutrina do liberalismo econômico, que orientou a codificação civil brasileira, não levara em conta as contradições inerentes a uma nação “recém-saída de três séculos de escravidão, acostumada a privilegiar a oralidade no ato de pactuar diante dos índices elevados de analfabetismo”, o que levava os “princípios igualitários que orientaram os artigos relativos aos contratos e ao direito das obrigações [a] permaneceram longo tempo como noção vaga e abstrata” (Código ..., s.d.)
O Livro IV dedica-se ao direito das sucessões e expressa o esforço pela estabilidade do grupo familiar, ao instituir a substituição fideicomissária, isto é, a designação de “pessoa para recolher herança ou legado, na falta ou depois de outros”, para em seguida efetuar a sua transmissão (Zanetti, 2017). O Código Civil reconheceu a igualdade entre descendentes legítimos e filhos naturais reconhecidos, já presente na legislação, mas alterou a ordem dos herdeiros necessários. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente, colaterais, e municípios, Distrito Federal ou União. Assim, foi reduzida a transmissão da herança até colaterais de sexto grau, e não mais de décimo, verificando-se um avanço em relação ao direito anterior no que se refere ao cônjuge sobrevivente, que passou do quarto para o terceiro lugar na ordem hereditária, após os colaterais (Tomasevicius Filho, 2016). Mas se ressalta que o cônjuge não estava arrolado entre os herdeiros necessários, podendo o testador dispor de todos os seus bens em favor de terceiros em testamento.
No século XIX, as monarquias absolutistas foram solapadas pelas revoluções liberais, na Europa e América, cujas transformações sociais e políticas impuseram uma nova organização político-administrativa e, por conseguinte, uma ordenação jurídica adequada à garantia dos direitos do cidadão. Neste novo contexto, a codificação civil viria institucionalizar as transformações desta nova ordem, em que se consagravam os valores individuais, sob inspiração dos princípios liberais, e a garantia dos direitos fundamentais nas relações privadas com o Estado. No Brasil, o longo percurso para aprovação do Código Civil, ao contrário da precoce codificação que se verifica no ramo penal ou comercial, foi o resultado da difícil equação entre a permanência da escravidão e os valores fundamentais do liberalismo vigente, como a garantia dos direitos civis. Não por acaso, verifica-se a ausência de questões relativas ao direito trabalhista no Código Civil – passadas apenas duas décadas da abolição da escravidão no país, a experiência com a utilização de mão de obra livre ainda era muito recente.
O Código Civil brasileiro expressou tais contradições, embora a escravidão tenha sido abolida em 1888 e a monarquia, derrubada no ano seguinte, as ideais liberais conviveram com uma sociedade patrimonialista e conservadora. Ainda que nas diversas tentativas de elaboração de um código civil no país se perceba a forte influência de escolas jurídicas e experiências normativas de outros países, notadamente dos códigos civis francês e alemão, o texto aprovado em 1916 refletiu as aspirações da elite brasileira, mantendo-se “no círculo da realidade subjacente que cristalizara costumes, convertendo-o em instituições jurídicas tradicionais” (Gomes, 2003). Ao longo de sua vigência, o Código Civil sofreu inúmeras alterações, mas foi somente em 2002 que uma nova versão foi aprovada, pela lei n. 10.406, de 10 de janeiro desse ano.
Dilma Cabral
Nov. 2023
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Referência da imagem
BRASIL. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil: Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1916. Arquivo Nacional, ACG09903.