A Comissão Construtora da Avenida Central foi instituída pelo decreto n. 4.969, de 18 de setembro de 1903, que aprovou os planos, as plantas e os orçamentos para a execução das melhorias do porto do Rio de Janeiro. Subordinada diretamente à pasta da Indústria, Viação e Obras Públicas, ocupada pelo ministro Lauro Severiano Muller, que nomeou como seu engenheiro-chefe André Gustavo Paulo de Frontin, a comissão tinha por atribuição todas as obras referentes à abertura e à construção da avenida Central, que ligaria a região portuária ao Centro da cidade do Rio de Janeiro, seguindo determinação da portaria de 21 de novembro de 1903.
A comissão foi estabelecida no contexto das mudanças que ocorriam na cidade do Rio de Janeiro, capital da recém-proclamada República, que buscava espelhar-se nas nações então consideradas civilizadas (Neves, 2013, p. 19). Desde a segunda metade do século XIX, o discurso da modernização e do progresso se fixara no ideário da elite imperial brasileira, tendo se intensificado nas primeiras décadas republicanas. As possibilidades da ciência em transformar e resolver os problemas do homem e da sociedade eram consideradas indiscutíveis, sendo preciso apenas inteligência e vontade para resolvê-los (Neves, 2013, p. 23-24; Faoro, 1992, p. 11). Acreditava-se que tais mudanças não seriam espontâneas, e deveriam ser dirigidas por grupos que detivessem conhecimento para sua concretização. Nesse sentido, o processo de modernização seria conduzido pelas elites do país, excluindo quase por completo as camadas populares dos processos decisórios e fazendo com que padecessem as mudanças ao invés de delas participarem (Faoro, 1992, p. 14).
A reforma do Rio de Janeiro era vista como uma ação primordial pelo governo, de modo a adequar a cidade ao modelo civilizatório, transformando-a em uma vitrine, símbolo do que seria estendido ao restante do país. O Rio de Janeiro entrava, assim, para o rol de cidades que sofreram recente processo de modernização e reforma, notadamente a partir da segunda metade do século XIX: Paris (1835-1869), Londres (1848-1865), Viena (1857), Barcelona (1859), Florença (1864-1877), Bruxelas (1867-1871) (Benevolo, 1987, p. 351-354; Neves, 2013, p. 41).
Nesse cenário, a engenharia era um dos baluartes do discurso do progresso e da civilização, o que possibilitava a convergência de projetos da elite industrial com o discurso da nacionalidade. Desde 1880, o Clube de Engenharia assumia essa fusão de interesses e discursos, distinguindo-se não somente como uma associação profissional, mas também como uma instituição a serviço da engenharia e que buscava o engrandecimento do país pelo trabalho. O próprio Paulo de Frontin, engenheiro-chefe da Comissão Construtora da Avenida Central, fora presidente do clube entre 1903 e 1931 (Turazzi, 2006, p. 66-71).
Tentativas de reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro podem ser vistas desde o Império, como, por exemplo, no estabelecimento da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro (1874-1876). Tais projetos, entretanto, não se concretizaram, vindo a ocorrer somente no governo Rodrigues Alves (1902-1906). De fato, a estabilização da economia implementada pelo governo Campos Sales (1898-1902), baseada na recuperação do preço do café no mercado internacional e numa austera política financeira e deflacionária, permitiu a contratação de novos empréstimos para as obras da capital brasileira (Benchimol, 2013, p. 255; Neto, 2013, p. 214).
As obras tiveram duas grandes frentes: os melhoramentos do porto do Rio de Janeiro, que até então figurava entre os quinze maiores do mundo e era o terceiro das Américas, e a construção da avenida Central, tendo como modelo, principalmente, as avenidas parisienses, após a reforma promovida pelo seu prefeito, Georges-Eugène Haussmann. De acordo com a concepção urbanística da época, as avenidas eram os grandes elementos de remodelação urbana, que, além de trazerem benefícios diretos à circulação na cidade e transformarem as formas sociais de ocupação do espaço, contribuíam, decididamente, para a melhoria da saúde pública.
Desse modo, como ocorreu em muitas cidades europeias a partir da segunda metade do século XIX, a questão sanitária teve um peso importante nas reformas realizadas pelo governo no Rio de Janeiro. As epidemias que sazonalmente aconteciam na cidade passaram a exigir políticas públicas específicas por parte do Estado desde o período imperial. A identificação entre condições sanitárias e saúde pública foi um dos discursos justificadores das intervenções estatais em espaços naturais, como mangues e pântanos, e nas habitações consideradas insalubres, notadamente os cortiços existentes na região em que seria construída a avenida Central (Benchimol, 1992, p. 178-181). Nestes últimos, as constantes incursões dos agentes do governo liderados pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz, muitas vezes acompanhadas por força policial, com o objetivo de combater focos de doenças, geravam, não raro, conflitos e tensões com seus habitantes. O exemplo mais significativo foi o episódio que teve nas tentativas de vacinação obrigatória seu estopim: a Revolta da Vacina, em 1904. Esse evento pode ser considerado não apenas uma reação das populações mais pobres contra a vacinação obrigatória imposta pelo governo, mas também a explosão das insatisfações e tensões latentes ocasionadas por medidas de exclusão e controle social implementadas pelo Estado. Nesse sentido, a resposta não era apenas contra a vacina, mas contra o papel desses grupos mais pobres, ou seja, o de excluídos (Sevcenko, 1984, p. 88).
As obras da cidade foram divididas entre as administrações federal e municipal. Os melhoramentos do porto, vitais para o comércio exterior, e a construção das vias que o ligavam ao Centro da cidade, como a do Cais, a avenida do Mangue e a avenida Central, ficariam a cargo do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Os trabalhos sob a alçada ministerial seriam executados por duas comissões criadas para esse fim: a Comissão Fiscal e Administrativa das Obras do Porto do Rio de Janeiro e a Comissão Construtora da Avenida Central. O município do Rio de Janeiro seria responsável pelo alargamento de várias ruas e pela construção da avenida Beira-Mar e de outra que faria a ligação entre o largo do Estácio e o Passeio Público (Siciliano, 2015, p. 135).
Nessa empreitada, uma grande rede de interesses também esteve presente: o capital financeiro internacional, firmas de arquitetura e de construção, fabricantes e importadores de materiais e equipamentos, empresas de serviços públicos, dentre outros. A nova cidade projetada era incompatível com as edificações existentes até então na área em que se pretendia construir a avenida Central, e, por isso, elas deveriam desaparecer. As disputas e oposições de estilos arquitetônicos, assim como a esgrima retórica que defendia prédios modernos, higiênicos, estéticos e civilizados em contraposição a edificações repugnantes, velhas, foco de doenças, na verdade mascarava a variada gama de conveniências políticas, econômicas e ideológicas, por trás das obras de modernização da cidade (Benchimol, 2013, p. 261).
O concurso de fachadas para a nova avenida, realizado pela Comissão Construtora da Avenida Central, em 1904, expressou o objetivo de solapar e substituir a aparência antiga e tradicional da região, composta de sobrados com telhados de barro, por uma mais cosmopolita, formada por vários estilos arquitetônicos (Zagari-Cardoso, 2008, p. 44). Os novos prédios e fachadas eram registrados cuidadosamente por fotógrafos contratados pela administração pública com o intuito de afirmar a ação do Estado como um promotor de bem-estar coletivo e de desenvolvimento material do país. A publicação do clássico álbum de Marc Ferrez, Avenida Central: 8 de março de 1903 – 15 de novembro de 1906, provavelmente encomendado pela Comissão Construtora da Avenida Central, laureou esses esforços de criação e preservação da memória da ação estatal na capital brasileira (Turazzi, 2006).
Para a realização das obras de reforma, o Conselho Municipal da cidade do Rio de Janeiro foi suspenso por seis meses, um dia antes da posse do prefeito Pereira Passos, em 30 de dezembro de 1902. Isso permitiu ao novo mandatário legislar por decretos, assim como contratar operações de crédito sem oposição. Dessa maneira, as obras da cidade seriam tocadas com maior rapidez. Ao mesmo tempo, a prefeitura determinou uma série de proibições de hábitos, costumes e formas de lazer que passaram a ser considerados indesejáveis para a nova cidade que se pretendia construir, tendo a repressão recaído, majoritariamente, sobre os estratos populares (Benchimol, 2013, p. 262-263).
Outra frente em que o governo precisou atuar foi a aprovação de leis que dessem ao Estado a base jurídica necessária, assim como os recursos de que carecia para a construção da avenida. Tais leis entraram em vigor no ano de 1903, por meio da modificação da base de cálculo das desapropriações requeridas para as obras, da mesma forma que permitiram ao Poder Executivo do município do Rio de Janeiro realizar leilões públicos dos terrenos que foram desapropriados, tornando possível a sua compra, principalmente, por representantes das elites. As indenizações dadas aos antigos proprietários tiveram como base o imposto predial pago pelos imóveis demolidos, que muitas vezes eram declarados bem abaixo do que realmente valiam por seus donos, com o objetivo de diminuir o valor do tributo. Entretanto, as construções consideradas ruinosas foram excluídas até mesmo dessas indenizações, o que deu ocasião para o governo municipal considerar muitos imóveis como não passíveis de ressarcimento (Benchimol, 2013, p. 261).
Os trabalhos de construção da avenida Central foram iniciados em 8 de março de 1904, com uma solenidade em que esteve presente o presidente Rodrigues Alves, além de outras autoridades do governo e convidados (Brasil, 1905, p. 679). Estima-se que tenham sido derrubados entre seiscentos e setecentos prédios e construções variadas (Benchimol, 2013, p. 258; Turazzi, 2006, p. 73), trazendo importantes modificações na ocupação do espaço da cidade do Rio de Janeiro. A população expulsa da região em que se construía a imponente avenida viu-se, em sua grande maioria, impossibilitada de residir nos subúrbios, região cara e acessível somente a quem tinha remuneração com estabilidade necessária para gastos com moradia e transporte. Dessa forma, a ocupação com casebres nas regiões mais altas da cidade, como os morros da Favela e de São Bento, acabou sendo a solução encontrada pelos mais pobres para continuar residindo próximo aos locais em que possuíam suas relações pessoais e onde ganhavam o sustento. Assim, as favelas emergiam como um elemento cada vez mais comum na paisagem carioca (Benchimol, 2013, p. 265).
A avenida foi inaugurada no dia 15 de novembro de 1905. Entretanto, a Comissão Construtora da Avenida Central continuou exercendo suas atividades por conta da necessidade de obras complementares, embora um grande número de seus funcionários tivesse sido dispensado (Brasil, 1907b, p. 917). A última referência à comissão, encontrada no relatório do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, foi em 1907, expondo os detalhes dos últimos trabalhos que faltavam para a conclusão das obras.
Salomão Pontes Alves
Ago. 2015
Fontes e bibliografia
BENCHIMOL, Jaime Larry. Reforma urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930 – Primeira República (1889-1930). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013. p. 231-286. (O Brasil Republicano, 1).
______. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes; Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural; Divisão de Editoração, 1992.
BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Tradução de Eduardo L. Nogueiro Conceição Jardim. Lisboa: Presença, 1987.
BRASIL. Decreto n. 4.969, de 18 de setembro de 1903. Aprova os planos, plantas e orçamentos para a execução das obras de melhoramento do porto do Rio de Janeiro, declara desapropriados os prédios e terrenos nelas compreendidos e cria uma caixa especial para esses serviços. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 2, p. 633-635, 1907.
______. Portaria de 21 de novembro de 1903. [Dá instruções para a Comissão Construtora da Avenida Central]. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 19 nov. 1904a. Seção 1, p. 2.
______. Decisão n. 368, de 7 de maio de 1904. Declara ao chefe da Comissão Construtora da Avenida Central ficaram aprovadas as regras gerais para as construções da mesma avenida. Decisões do governo da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, v. 1, p. 126-128, 1908.
______. Portaria de 16 de julho de 1904. [Dá instruções para a Comissão Construtora da Avenida Central]. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 17 jul. 1904b. Seção 1, p. 3.316.
______. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, Lauro Severiano Müller, no ano de 1904. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904c.
______. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, Lauro Severiano Müller, no ano de 1905. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905.
______. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon du Pin e Almeida, no ano de 1907. v. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907b.
FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estudos Avançados, v. 6, n. 14, p. 7-22, 1992.
NETO, José Miguel Arias. Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930 – Primeira República (1889-1930). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013. p. 231-286. (O Brasil Republicano, 1).
NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República: o Brasil na virada do século XIX para o século XX. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930 – Primeira República (1889-1930). 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013. p. 231-286. (O Brasil Republicano, 1).
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SICILIANO, Tatiana Oliveira. O Rio de Janeiro de Artur Azevedo: cenas de um teatro urbano. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2015.
TURAZZI, Maria Inez. Paisagem construída: fotografia e memória dos "melhoramentos urbanos" na cidade do Rio de Janeiro. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 22, n. 35, p. 64-78, jun. 2006. Disponível em: https://goo.gl/BMcK9a. Acesso em: 18 ago. 2015.
ZAGARI-CARDOSO, Sandra. Avenida Central: arquitetura e tecnologia no início do século XX. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. Disponível em: https://bit.ly/3M1f2Rh. Acesso em: 18 ago. 2015.
Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_1C Comissão Construtora da Avenida Central
BR_RJANRIO_Z9 Companhia Docas do Rio de Janeiro
BR_RJANRIO_23 Decretos do Executivo - Período Republicano
BR_RJANRIO_OI Diversos GIFI - Caixas e Códices
Referência da imagem
Arquivo Nacional, Fundo Comissão Construtora da Avenida Central, BR_RJANRIO_1C_0_MAP_63_1