O Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais foi criado pelo decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910, com a finalidade de prestar assistência aos indígenas do Brasil e estabelecer centros agrícolas, constituídos pelos chamados trabalhadores nacionais.
A incorporação dos indígenas e dos trabalhadores nacionais no processo produtivo e o combate ao êxodo rural figuraram na pauta dos debates realizados pelos representantes dos setores agrícolas distanciados do centro de poder, que estiveram na origem da criação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio em 1906. Se nas áreas de plantio de café, a mão de obra era suprida pelos imigrantes, nas outras regiões se faziam necessárias medidas voltadas para os ‘nacionais’, denominação que abrangia ex-escravizados e seus descendentes, sertanejos e outros grupos (Mendonça, 1997, p. 85; 168). Assim, promover uma melhor distribuição espacial da força de trabalho e administrar os conflitos indígenas resultantes, especialmente, do processo de especulação de terra impulsionado pela expansão da rede ferroviária, constituíram-se como objetivos da ação do Estado por meio do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, de forma a contribuir para “o alargamento das fronteiras, simbólicas e econômicas, da Nação” (Mendonça, 1997, p. 168).
Antes da criação do órgão, a preocupação com a transformação de contingentes populacionais em produtores mercantis apareceu no decreto n. 6.455, de 19 de abril de 1907, que aprovou as bases regulamentares para o serviço de povoamento do solo nacional. Esse ato determinou o estabelecimento de núcleos coloniais, divididos em pequenas propriedades, destinados à produção de gêneros para abastecimento interno, que deveriam ser ocupados principalmente pelos imigrantes, cabendo uma pequena porcentagem aos trabalhadores nacionais (Mendonça, 1997, p. 171).
Mais complexa, a questão específica dos indígenas mereceu a atenção dos governantes desde o período colonial. Datam do século XVI as primeiras leis portuguesas regulando a liberdade e as possibilidades de sua utilização como mão de obra, voltadas para dirimir os conflitos entre os colonos e os padres responsáveis pela catequização. Em 1757, foi estabelecido o cargo de diretor dos índios, com a finalidade de incorporá-los ao modelo de civilização europeu, baseado no trabalho, fortalecendo, dessa maneira, a autoridade metropolitana na colônia (Diretores..., 2013).
Depois da extinção do Diretório dos Índios em 1798, não houve regulamentação para o tratamento dos assuntos relacionados aos indígenas. No Segundo Reinado foi elaborada uma política indigenista centrada na integração do indígena à sociedade. Em 1845, o decreto n. 426 regulamentou as missões de catequese e civilização dos indígenas no país, cuja administração era compartilhada por autoridades religiosas e laicas, e instituiu o cargo de diretor-geral dos índios, que ficou encarregado do governo das aldeias (Diretorias, 2016).
Após a Proclamação de República, a atribuição de 'catequese dos índios' foi transferida da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores pela lei n. 23, de 30 de outubro de 1891. No entanto, ações efetivas apareceram apenas após a criação de uma pasta dedicada à agricultura em 1906, que assumiu essa função.
A ideia de integrar os indígenas ao mundo civilizado, inserindo-o no processo de modernização do Estado Nacional foi especialmente cara aos representantes do Apostolado Positivista, que apresentaram suas propostas na Assembleia Constituinte em 1890, sem sucesso. Mais tarde, essas propostas se constituíram como base do serviço, cujo primeiro diretor foi o tenente-coronel Cândido Mariano Rondon (1865-1958), que possuía uma vasta experiência advinda das atividades no interior do país, onde trabalhou na instalação de telégrafos (Rodrigues, 2011, p. 209; 214).
Na exposição de motivos que acompanhou o decreto n. 8.072, o ministro da Agricultura, Indústria e Comércio ressaltou o dever republicano de prover aos indígenas “cuidadosa assistência, fiel ao dever de estimular o desenvolvimento de suas faculdades morais, de sua capacidade de trabalho e de defender-lhes a vida” (Brasil, 1910, p. 4788). Além disso, explicitou a substituição do termo catequese por proteção, evidenciando o caráter laico das novas orientações, que se fariam, inicialmente, com destacada presença militar (Rodrigues, 2011, p. 220; Lima, 2011, p. 207).
Na promoção da assistência aos indígenas cabia ao órgão velar pelos seus direitos, garantir a posse dos seus territórios, evitar a invasão de suas terras, envidar esforços para melhorar suas condições materiais de vida, com o ensino de artes, ofícios e técnicas de produção agrícola e industrial, fornecer instrumentos de música, ferramentas, animais domésticos, cuidar da instrução primária e profissional, respeitar a organização de cada tribo, sua independência, seus hábitos e instituições, entre outras disposições.
De acordo com o decreto n. 8.072, a estrutura do serviço seria composta pela diretoria-geral, formada por duas subdiretorias e portaria, mais treze inspetorias espalhadas pelo país, povoações indígenas e centros agrícolas. As povoações indígenas seriam constituídas a partir da transformação dos antigos aldeamentos. Em cada uma delas se instalariam escolas de ensino primário, aulas de música, oficinas e campos apropriados à aprendizagem agrícola.
No que se refere aos trabalhadores nacionais, o decreto estabeleceu os centros agrícolas. Os centros eram divididos em lotes, que poderiam ser adquiridos pelas famílias de agricultores. Como estímulo, o governo concederia favores tais como o transporte, o fornecimento de ferramentas, plantas e sementes, o auxílio para a manutenção de cada família nos três primeiros meses e a assistência médica gratuita, pelo prazo de um ano. Com isso, procurava-se promover a fixação da mão de obra rural não estrangeira no campo, por meio de um sistema de controle do acesso à propriedade e treinamento técnico da força de trabalho (Lima, 1992, p. 156).
Em 1911, o decreto n. 9.214, de 15 de dezembro, deu novo regulamento ao órgão, promovendo poucas alterações, com destaque para a diminuição do número de inspetorias de treze para dez.
Nos seus primeiros anos de existência, o serviço passou por algumas dificuldades, como pode ser observado pela leitura dos relatórios ministeriais. Dentre os obstáculos enfrentados estiveram as distâncias a serem percorridas pelos funcionários, os “estorvos no trato de gentes cujo atraso mental e diversidade de costumes exigiam demorada e prudente ação” (Brasil, 1912, p. 113), e a escassez de recursos (Brasil, s.d., p. 71).
Além das ações nas povoações indígenas, o serviço procurou atuar em relação aos indígenas nômades e aqueles que segundo o decreto n. 8.072 “viviam em promiscuidade com civilizados” (Brasil, 1915, p. 946), a partir da criação de postos de atração, proteção e pacificação, subordinados às inspetorias, o que exigiu a criação de novos cargos técnicos (Nötzold; Bringmann, 2013, p. 120).
Em 1918, a lei n. 3.454, de 6 de janeiro, transferiu as competências relacionadas à localização de trabalhadores nacionais para a jurisdição da Diretoria-Geral do Serviço de Povoamento, alterando o nome do órgão para Serviço de Proteção aos Índios.
O Código Civil promulgado pela lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, estabeleceu a incapacidade civil relativa aos indígenas, sujeitando-os ao regime tutelar, instituído por leis e regulamentos especiais. Em 1928, a lei n. 5.484, regulou a situação dos indígenas nascidos no território nacional, atribuindo ao Serviço de Proteção aos Índios a função de tutela, até então a cargo do juiz de órfãos (Lima, 2011, p. 203). Essa lei classificou os indígenas em categorias, dispôs sobre a posse de terras, registro civil, além de conter prescrições sobre crimes cometidos por eles e contra eles.
O Serviço de Proteção aos Índios sofreria novas mudanças na década de 1930, sendo transferido para o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, posteriormente para o Ministério da Guerra, até retornar à pasta da Agricultura em 1939. Neste ano, foi criado o Conselho de Proteção aos Índios, dedicado ao estudo de todas as questões relacionadas à assistência e proteção dos indígenas, seus costumes e línguas.
Angélica Ricci Camargo
Out. 2018
Fontes e bibliografia
BRASIL. Decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910. Cria o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais e aprova o respectivo regulamento. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 2, p. 943-958, 1915.
______. Decreto n. 9.214, de 15 de dezembro de 1911. Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 4, p. 57, 1915.
______. Exposição de motivos [do decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910]. Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, 24 jun. 1910. Seção 1, p. 4788-4789.
______. Lei n. 3.454, de 6 de janeiro de 1918. Fixa a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1918. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 5-117, 1919.
______. Lei n. 5.484, de 27 de junho de 1928. Regula a situação dos índios nascidos no território nacional. Coleção das leis da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, p. 111-119, 1929.
______. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Agricultura, Indústria, Comércio dr. Pedro de Toledo em 1912. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1912. Disponível em: https://bit.ly/34zgODH. Acesso em: 31 set. 2018.
______. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado da Agricultura, Indústria, Comércio dr. José Rufino Beserra Cavalcanti em 1916. Rio de Janeiro: s.e, s.d. Disponível em: https://goo.gl/wuh3hn. Acesso em: 31 out. 2018.
DIRETORES/DIRETÓRIOS dos Índios. In: DICIONÁRIO da Administração Pública Brasileira do Período Colonial (1500-1822), 2013. Disponível em: https://goo.gl/RY5DbQ. Acesso em: 31 out. 2018.
DIRETORIAS/DIRETORES-GERAIS de Índios. In: DICIONÁRIO da Administração Pública Brasileira do Período Imperial (1822-1889), 2016. Disponível em: https://goo.gl/NyVCvu. Acesso em: 31 out. 2018.
LIMA, Antônio Carlos de Souza. O governo dos índios sob a gestão do SPI. In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, p. 155-172, 1992.
______. Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. In: ROCHA, Carlos Augusto da (org.). Memória do SPI: texto, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio-FUNAI, p. 201-211, 2011.
MENDONÇA, Sônia Regina. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: HUCITEC, 1997.
NÖTZOLD, Ana Lúcia Vulfe; BRINGMANN, Sandor Fernando. O Serviço de Proteção aos Índios e os projetos de desenvolvimento dos Postos Indígenas: o Programa Pecuário e a Campanha do Trigo entre os Kaingang da IR7. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, São Leopoldo, v. 5, n. 10, dezembro de 2013.
RODRIGUES, Cíntia Régia. A construção da política indigenista na república brasileira a partir das idéias de modernidade. Tellus, Campo Grande, ano 11, n. 21, p. 203-223, jul./dez. 2011.
Documentos sobre este órgão podem ser encontrados nos seguintes fundos do Arquivo Nacional
BR_RJANRIO_23 Decretos do Executivo - Período Republicano
BR_RJANRIO_CD Tribunal Especial
Referência da imagem
Inquérito na Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios no Amazonas e Acre. Razões de Defesa apresentadas à Junta de Sanções Federal por Bento Pereira de Lemos. Anexos, 1931, v. 4. Tribunal Especial – processo n. 640, 1930-1932. BR_RJANRIO_CD