

Fábio Campos Barcelos e Louise Gabler
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Tendo estabelecido sucintamente os limites de separação e os pontos de confluência
entre Estado, governo e administração pública, e ressaltado o espaço ocupado pelo Poder
Executivo nesse jogo de forças, acreditamos ter munido o leitor das ferramentas necessárias
para melhor compreender o terreno em que buscamos inserir nosso trabalho. Já ressaltamos
que os conceitos apresentados até aqui, por serem socialmente constituídos, são volúveis ao
desenrolar do processo histórico-social. Assim, interessados como estamos em trabalhar a
estrutura administrativa no período recente, seria imprudente não considerarmos a sua
trajetória anterior e a forma como ela interagiu com as manifestações do Estado e dos
diferentes governos ao longo do século passado, e que serviram para determinar a forma como
a administração pública se apresentava quando da posse do presidente Collor em 1990.
O mundo viveu, nas quatro primeiras décadas do século XX, um momento conturbado:
as duas grandes guerras e a crise econômica de 1929 fizeram com que a ordem econômica,
política e social vigente até então fosse profundamente abalada. Como resultado desse
processo de transformação, enquanto Estados Unidos e União Soviética lutavam por campos
de influência, um novo modelo de Estado surgia. No bojo da ascensão de novas teorias
econômicas e sociais e da política do
New Deal
, adotada pelo governo americano como forma
de escapar da profunda depressão econômica do entreguerras, surge a figura do Estado do
bem-estar social, que assume a função não só de lutar contra a desigualdade de renda, mas de
passar a tratar como direitos políticos de todo cidadão o acesso a serviços ligados a saúde,
educação e habitação. Uma das maiores lições da crise de 1929 foi que, ao contrário do que
pregava a teoria econômica em voga,
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as forças de mercado, sozinhas, não davam conta de
garantir a estabilidade do sistema capitalista. A partir dessa mudança de paradigma, passou a
se fortalecer a perspectiva de que o Estado deveria assumir o papel de agente estabilizador,
atuando na economia para garantir sua eficiência e desenvolvimento, utilizando, para isso,
tanto seu poder de regulação quanto intervenções diretas junto à iniciativa privada (Ruas, s.d.,
p. 3). Com isso, ficou claro que o “bem-estar social” passava, necessariamente, por essa
atuação do Estado sobre o sistema econômico para manter sua estabilidade.
No Brasil e nos demais países do Terceiro Mundo, em geral, essa teoria assumiu
contornos especiais. Por serem nações que apresentavam um certo grau de desenvolvimento
econômico, mas cujos indicadores sociais ainda eram muito inferiores aos dos países mais
desenvolvidos, tornou-se forte a crença de que o papel a ser desempenhado pelo Estado
nestes países, principalmente sobre a economia, era ainda mais importante, uma vez que a
maior parte dos investimentos necessários para diminuir esse “atraso” e garantir um padrão
sustentável de crescimento com elevado retorno social, não possuía rentabilidade de curto
prazo suficiente para se tornar atraente ao setor privado (Pinheiro; Giambiagi, 1992, p. 2).
Reforçando essa corrente, havia ainda a ideia de que, para alcançar os níveis de
desenvolvimento dos países mais avançados, a economia brasileira devia abandonar seu
1 O liberalismo econômico do início do século XX se baseava essencialmente nas ideias de Adam Smith,
John Stuart Mill, Jean Baptiste Say e Alfred Marshall, entre outros, tendo como um de seus postulados
a crença na
livre iniciativa e na concorrência “como princípios básicos capazes de harmonizar os
interesses individuais e coletivos e gerar o progresso social”. Dessa forma, “não há lugar para a ação
econômica do Estado, que deve apenas garantir a livre concorrência entre as empresas e o direito à
propriedade privada” (“Liberalismo”, 2004, p. 347). Como veremos, essas concepções também estarão
presentes no pensamento neoliberal, que passou a predominar nas últimas décadas do século XX.